E, de tudo o que eu vejo, ouço e sinto, muito tenho engolido às pressas, às vésperas da fome.
Indigesto e vasto agora.
Visto meu colar de girassol e sigo entre mundos.
Sofro de transtornos ocultos.
Rafael Freitas
Meu coração vai na frente
Ofegante, infante, sem respiração
Um coração que hesita
Mas exulta e exalta toda a criação
Meu coração passageiro
Que vagueia sem rumo à procura de chão
Que ecoa em um peito vazio
Com espaço pro novo e sua incursão
Meu coração não tem cura
Em sua epopeia é seu próprio vilão
Se destrói, se automutila
Em seguida adoece em busca do perdão
Rafael Freitas
A imbecilidade invadiu a cidade
Com a facilidade do espaço vazio
De verde e amarelo, cantando um poema
Que não era pra cena, um desvario
O verdadeiro imbecil é resistente
Doente, demente, de curto pavio
Mas, ainda tardia, por felicidade
Na mesma cidade, uma estrela se viu
Seguindo seu rumo, furando bloqueios
Em seus devaneios de um novo Brasil
A nossa bandeira não será vermelha
Centelha de luz em um mundo sombrio
Rafael Freitas
Era uma fila enorme na porta de um condomínio.
Condomínio de rico, em frente ao Portal, onde as pérolas se
escondem.
Pérola negra, em meio ao lixo de um lamaceiro de entulhos.
Ainda era cedo, talvez antes das seis.
Dezenas esperavam o trabalho, enquanto lá dentro alguns
ainda dormiam.
Em xeque a igualdade de um lar e comida.
Povo sem cheque.
Sem casa.
Sem trabalho.
Sem prato.
Sem nada.
E, acima de tudo:
Sem noção de que é excluído pelos que ainda podem dormir.
Rafael Freitas
Parecia o fim dos tempos.
O fim do mundo em poucas linhas:
ADEUS.
Parecia um mar aberto, sem encostas.
Sem praia, farol ou andorinhas.
Tudo parecia ser a mesma coisa.
As coisas eram como se não existissem.
DOR.
A dor do luto, da perda inevitável.
O peso do piano nas costas de uma formiga.
Parecia que o ar sufocava.
As pernas não suportavam o peso do corpo enfermo.
FIM.
Parecia um final irresoluto.
Ao mesmo tempo bem resolvido.
Um paradoxo frio e calculista.
Tudo parecia escuro e denso.
Tudo.
PARECIA.
Parecia tudo ser o que não era.
Não era.
Toda lágrima caída.
Toda palavra não dita.
Tudo que era para ser e não foi.
Estava à espera.
CAOS.
Toda confusão mental era um indício.
Um caminho feito a pés sem pele.
Um riso de sangue e abandono.
Era algo que não parecia.
ERA O AMOR PROCURANDO O SEU LUGAR.
Rafael Freitas
No dia em que enlouqueci os pássaros cantavam.
Nunca saberei responder se estavam felizes, mas cantavam.
Naquele dia, pela pouca memória que me resta, eu não estava
atrasado.
Ao que me parece, as coisas acontecem na hora certa.
Como se fosse uma programação além vida. Como uma agenda
estelar.
Sempre penso nessa programação com hora marcada.
Talvez isso me conduza à escravidão dos relógios digitais.
Sempre crio confusão com ponteiros quando estou com pressa.
O analógico nos abandona a cada dia. O fazer com as
próprias mãos.
No dia em que enlouqueci eu pensava sobre isso: fazer com
as próprias mãos.
Era um dia frio e nublado. Vi um tucano pulando nos galhos
de uma farinha seca.
Tropecei num pedaço da calçada que se levantava com a força
da raiz liberta.
Juro que pensei que não fosse enlouquecer.
Não naquele momento, não tão cedo.
Era cedo, tinha meia idade.
Era cedo, de manhã.
Era cedo, ainda aconteceriam muitas tragédias.
No dia em que enlouqueci eu já não assistia televisão.
Não lia mais autoajuda.
Não jogava na loteria esperando por Deus.
Era um dia cinza, frio.
Um belo dia para se enlouquecer.
Ao menos não errei a data.
No dia em que enlouqueci já não seguia calendários.
Já não seguia setas.
Já não seguia placas.
Talvez eu nem tenha percebido o instante exato em que
enlouqueci.
Abandonar padrões de sanidade demanda tempo.
Abri a carteira, numa padaria de esquina, pedi um café.
Eu tinha dinheiro.
Isso não era comum.
No dia em que enlouqueci eu só tinha dinheiro.
Não tinha mais nada, nem ninguém.
O fungo negro secava pulmões.
A peste aérea invisível destruía tudo que tocava.
Um imbecil ria, ofendia, odiava.
Tudo acontecia.
No dia em que enlouqueci, tudo acontecia.
Talvez fosse um dia comum.
Sem amor, sem filhos, sem nação, sem rumo, sem placas, sem
nada.
Ainda tinha uns trocados na carteira.
Entreguei ao homem estranho do semáforo.
Pobre homem que todos chamavam de louco.
Mal sabia ele que o louco era eu.
Rafael Freitas
Eu não consigo entender essa injustiça.
Mais um ano, mais uma comemoração sob o medo e a incerteza.
Devia ser mais um dia comum, como há trinta e seis anos atrás.
Devia ser um choro de renascimento junto ao badalar do sino da igrejinha.
As lágrimas, hoje, são por vidas, sim.
Vidas perdidas. Descaso.
O acaso nos protege.
Não fosse isso, estaríamos todos mortos.
Oh, Santo Protetor das Armas de Fogo, incendeie com sua mais viril chama a consciência flamejante dos imbecis, déspotas, inconsequentes e sarristas filhos de tua pólvora.
Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum, pois Tu estás comigo.
Que minha mãe possa soprar suas velas sobre um bolo de confeitaria e não sobre o túmulo de seus filhos.
Resisto.
Sobrevivo.
Eu não consigo entender essa apatia.
Essas mãos atadas prontas para um nocaute ao poder insensível.
As flores não estão mortas, só murcharam um pouco em meio ao árido topor seco da desonra.
Coração na boca, respiração pausada, medo de inalar o ar que em outros tempos era o prana.
Mais um ano e tudo parece estacionado.
Ampulheta imóvel, areia em suspensão.
Não quero novos anos.
Anseio o que é meu por direito: a vida.
Quero brincar com meus erros e acertos, minhas correções e falhas sem medo de não ter outra chance.
Os dias, desde o buraco na história, são sempre iguais.
Mas hoje não.
Hoje é o meu aniversário.
Oh, Mãe Divina
Me ilumina
Por onde eu andar.
Rafael Freitas
Corretores ortográficos são a prova de que um deep state nos controla.
Controle absoluto até dos
erros ortográficos tupiniquins.
Corretores de expressão, de
pensamento.
Atrás das máscaras são
universos oprimidos.
Transformados em pedras de
roseta nunca lidas.
Não sabemos do antes, muito
menos do agora.
O que virá depois?
Corretores de postura.
Corretores de ideias.
Corretores de falas.
Corretores de corretores.
Com tanta correção, onde estão
os acertos?
Concertos.
Consertos para a juventude.
Rafael Freitas