O sofrimento
estampado em seu rosto denunciava o quanto a presença daqueles braços se fazia
necessária. Não queria nada além de um abraço, um minuto de atenção. A
incompreensão cria monstros assombrosos dentro das pessoas que em pouco tempo
se exteriorizam, manipulam, consomem.
A
súplica por carinho foi respondida com as costas. Costas não respondem nem
ouvem nem consolam.
As
lágrimas não perdoam.
Seguiu
metodicamente seu livro familiar de criação de filhos e teve a plena certeza de
que pessoas tem manual de instruções, de que a criação que recebera foi a
melhor que se pode esperar e que era a melhor a aplicar em seus filhos.
Hora
do jantar, hora do café, hora de dormir.
Carinho
excessivo cria seres humanos vulneráveis. Nada
de abraços sem hora marcada.
Amar
dá trabalho. Cuidar dá trabalho. Preocupar-se dá trabalho.
Trabalhar
era tudo que não queria.
Casou-se
com um bem sucedido empresário para não ter que se preocupar com mais nada.
Nunca quis filhos, mas a sociedade sempre cobra família perfeita de seres
imperfeitos. Transou sem vontade nem emoção, fez o que foi necessário para
agradar o marido, a sogra, os maçons, a puta que o pariu.
Só
não agradou a si mesma.
Mas
era necessário. Todos podiam mais que ela, todos eram mais felizes, todos ao
menos eram. Ela não.
Nunca
foi nada. Nem boa filha, nem boa aluna, nem boa atleta, nem artista, nem
cozinheira, faxineira, nada.
Nada.
Resolveu
reproduzir sua inexistência casando-se com um ser tão sem vida quanto. Só não contava
com os filhos.
Nunca
quis esse desgaste. Esse peso eterno e enfadonho de uma história sem fim.
Mas...
Já
era acostumada a viver entre conjunções. Filhos eram só mais uma.
Usou
o manual. Os resultados não foram os melhores, mas não sabia outra forma. As
fórmulas haviam se esgotado.
Tentou
compra-los com chocolates, passeios monitorados, melhores escolas e carros de
luxo.
O
tempo sempre passa; até mesmo para quem não existe.
Um
dia viu-se de muletas, viúva e decrépita.
Podia
ainda contar com os filhos doutores, criados com técnicas infalíveis.
Tornaram-se
pessoas sem coração, emoção, quase tão inexistentes quanto a progenitora, mas
com dinheiro e colocação social, o que era ainda mais importante.
Invejados
filhos!
As
festas familiares eram constantes e tinha a plena certeza de que os vizinhos se
roíam em suas vidas infelizes e monótonas.
Sentia-se
alguém.
Depois
de tantas décadas, ser alguém exige método.
Na
despedida dos filhos, ao fim de um almoço colossal no dia das mães, sem motivos
aparentes caiu ao portão.
A
idade atravanca a mobilidade até dos maiores atletas.
Ergueu
os olhos e pôde vê-los. As duas maiores experiências científico-sociais de sua
vida a observavam calados e sem nenhuma expressão.
Sua
cabeça doía muito e já começava a sentir frio.
O
sofrimento estampado em seu rosto denunciava o quanto a presença daqueles
braços se fazia necessária. Não queria nada além de um abraço, um minuto de
atenção, o socorro necessário. A incompreensão cria monstros assombrosos dentro
das pessoas que em pouco tempo se exteriorizam, manipulam, consomem.
Os
monstros já estavam à solta.
Rafael Freitas
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