quarta-feira, 8 de junho de 2016

Dias sem sol

            Imagine uma vida inteira baseada em mentiras.
            Uma existência que nega toda sua essência em um simples piscar de olhos.
            É estranho pensar no fato de não conhecermos a nós mesmos, embora essa seja uma questão eterna e quase sempre com respostas indefinidas.
            Nosso herói vive uma novela em que a trama é sua vida e o antagonista ele mesmo. A personagem principal é a mentira.
            George tinha o fracasso como destino.
            Negro, pobre, abandonado pela mãe em uma lata de lixo, o pobre desgraçado só contemplava a escuridão em seu ridículo horizonte.
            Fora premiado uma única vez na vida: sofria de uma doença raríssima que provocava lentamente a falta de melanina em sua pele e, a simples ausência de luz solar por mais de setenta e duas horas, seria extremamente fatal, causando falência múltipla de órgãos.
            Como uma doença dessas seria um prêmio?
            Quem adotaria um negro, pobre, achado numa lata de lixo?
            A rara doença de George deu a ele a rara chance de um negro tornar-se branco.
            Essa foi sua sorte: negrinho hoje, branquinho amanhã! Pelo menos era o que diziam as responsáveis pela casa de adoção.
            Toda vez que alguém chegava, logo se ouvia: “Coitado! Mas essas manchinhas negras logo vão sumir! O médico garantiu!”.
            E foi assim que George conseguiu uma família. E uma família bem exótica por sinal.
            Um casal de alemães vindos de Berlim, que decidiram morar em Copacabana depois de se encantarem com o lugar.
            Diziam adorar o povo brasileiro: “No Brasil tudo é meio desorganizado, mas o povo consegue ser feliz!”, exclamavam com sotaque carregado.
            Decidiram adotar uma criança tipicamente brasileira e construir família na terra do futebol e do café. Ninguém melhor para o cargo de filho da família Weber do que George: brasileirinho hoje, alemão amanhã.
            E, pela imensa sorte que a doença trouxera, George estudou nos melhores colégios do Rio de Janeiro, aprendeu alemão e francês com os pais poliglotas, fez dança contemporânea e piano no Teatro Municipal e, aos dezoito anos de idade, finalmente, tornou-se branco.
            George adorava sua doença. Embora seu cabelo ainda fosse pixaim, sua pele desmentia sua descendência. Era adorado pelo círculo de amizades da família e até aceitava de vez em quando ser alvo de chacotas. Seus pais o amavam, a sociedade o amava e, claro, Deus o amava, caso contrário não o presentearia com tão nobre doença!
            Quem diria: George, o negrinho sem futuro da lata de lixo, era agora George Weber, cheio de pretensões e planos para o futuro, amor a Deus e à família, sem medos nem inimigos, cuja única fragilidade residia numa eventual falta de sol. Não havia nada a temer: nunca faltou sol no Brasil, quem dirá no Rio de Janeiro.
            Como George era feliz!
            Todos os dias a família Weber se reunia em frente ao aparelho de televisão, assistiam aos noticiários e falavam sobre o dia de cada um. O ano era 1983, e as ditaduras militares na América Latina eram a cena principal: conflitos armados, censura, exílio e assassinatos, tudo muito natural para os Weber, que vieram para o Brasil fugindo da loucura nazista vinte e três anos antes.
            Senhor Weber era um alemão rígido na criação do filho e no tratamento com a esposa Dora; sofrera muito com a guerra e ainda carregava em sua mente imagens terríveis que lhe rendiam pesadelos monstruosos e suores noturnos.
            Todos os dias o casal se trancafiava no quarto, ligava a velha sonata com o hino nacional alemão e conversava por horas, sem uma única gargalhada, longe dos olhares dos vizinhos e dos ouvidos de George, que imaginava aquilo como uma tradição alemã, embora se sentisse excluído e curioso com aquele momento íntimo dos pais.
            O que se passava ali? O que eles tanto escondiam de George?
            George nunca perguntou. Senhor Weber sempre deixou claro que aqueles momentos não interessavam ao agregado.
            Depois da descoberta da bomba atômica o mundo nunca mais foi o mesmo, o poder se concentrou nas mãos dos mais fortes e pelo aparelho de TV a família pôde assistir a desconfiança do mundo diante de testes nucleares que possivelmente aconteciam em alto mar.
            Senhor Weber afirmava que isso era coisa dos americanos imbecis e que esses testes eram para ter a certeza de que uma única bomba poderia destruir o mundo de uma só vez.
            A rotina da família Weber continuava na mesma, embora o clima de tensão aumentasse a cada noticiário.
            Os ânimos pesados não estavam apenas na família de George, mas também em todo mundo. As pessoas não saiam mais de casa, os alimentos começaram a ficar escassos e os vilarejos mais tranquilos passaram a ser cinza e sem vida.
            Tudo transcorria em clima de medo e desconfiança, até que realmente o pior aconteceu: às quinze horas e alguns minutos, do dia 14 de março de 1985, um tremor de terra percorreu o mundo todo. Prédios foram destruídos, cidades inteiras viraram pó.
            A desconfiança do mundo era verdadeira: em um teste nuclear fortíssimo o planeta se deslocou de seu eixo e, simplesmente, deixou de translar.
            Metade do globo estacionou na mais aterrorizante sombra, enquanto a outra metade tornou-se ressequida e desértica à total exposição solar.
            Não havia previsão alguma de quando a situação voltaria ao normal: o fim do mundo era só uma questão de tempo.
            O terror alastrou-se por todo o planeta, pessoas eram assassinadas, casas e lojas eram saqueadas e profetas surgiam às centenas. E, para todo o azar de George, sua metade do mundo estacionou na escuridão eterna.
            Não! George não sobreviveria sem luz solar! Pobre George!
            O jovem Weber ficou desesperado, mas ainda podia contar com a ajuda e conforto de sua família, afinal seus pais o amavam.
Senhor Weber estava em pé à janela ao lado de sua esposa quando George se aproximou e num gesto de apelo se abraçou ao casal. Seu pai, na mais absoluta frieza, retirou a mão de George do ombro e o encarou com rigidez e ódio.
            Sua família era uma farsa e com o fim cada vez mais próximo ninguém precisava mais mentir.
            George viu a suástica nas mãos do pai e quis acreditar que aquilo fosse uma brincadeira de mau gosto.
            Não era.
            O casal Weber detestava o Brasil o tanto quanto detestava o filho adotivo. Tudo era um disfarce perfeito e planejado: a exemplo de seu grande amigo Josef Mengele, nazistas colaboradores de Hitler, após passarem por diversos países em fuga, os Weber escolheram o país do carnaval como reduto definitivo e, como complemento do disfarce, adotaram um negrinho. Afinal, ninguém desconfiaria de um casal tão bom.
            As reuniões do casal eram uma adoração ao Führer e uma renovação dos votos de lealdade feitos ao Reich durante a guerra.
            George foi empurrado para fora de casa sem explicações. Agora era somente ele. Precisava de sol, estava fraco e com o coração em pedaços. Perdera em um só dia pai, mãe, a certeza de ser amado e de possuir um futuro.
            George não tinha mais nada. Nada. Só lhe restava sua fé em Deus e a mínima esperança de um nascer de sol.
            Como único reduto de um desgraçado, George recorreu à igreja. Aos prantos se dirigiu ao altar e se ajoelhou perante Jesus crucificado.
            Rezou e pediu a cura para sua doença, pediu uma família nova, pediu que tudo fosse um pesadelo. O padre o recebeu, ouviu seus problemas e ordenou que se conformasse: tudo era vontade do Senhor.
            Como tanta desgraça podia ser vontade do senhor?!
            George não podia contar nem mesmo com Deus.
            Sentia náuseas e frio, estava totalmente sem direção. Saiu do templo da fé e perambulou pela cidade. Já se passavam doze horas sem que George sentisse a luz solar.
            Na escuridão, vândalos tomavam conta das ruas, o inferno se alastrava em plena praia de Copacabana. Sexo, drogas e violência percorriam todo o planeta, mas para o ex Weber somente a luz solar importava. Outras vidas não importavam. Outras famílias não importavam. O egoísmo tomava conta do espírito de George e era o único sentimento que o impulsionava.
            George, enfurecido, abordou o primeiro carro que passava e sentiu prazer em espancar o motorista e as crianças que ocupavam o veículo. Respirou fundo, sentou-se ao volante e partiu em disparada rumo às terras ensolaradas, único lugar possível de sua sobrevivência.
            Dirigia sentido aeroporto, sentido à salvação, sentido à vida. Dirigia.
            Tudo que lhe fora negado durante sua curta história transbordava à sua frente, como uma cascata de fogos num réveillon.
            Assistia àquele filme proibido e se deliciava com tantos absurdos plausíveis, acessíveis e inegáveis. Aquilo sim era viver!
            Deus não fazia mais sentido. Por que se comprometer tanto com um ser desconhecido e cheio de moralidades?
            George não entendia. Nunca entendeu. Não quis mais acreditar.
            O Ser Supremo já não existia em seu voo de emergência para o Oriente. Nem família, nem crenças, nem esperança.
            O pouso de chegada ainda era escuro como a decolagem e a fraqueza, juntamente com a certeza da morte, assolavam George com toda força.
            Quarenta e sete horas já haviam passado.
            Não bastava mudar de continente. Era preciso buscar o sol.
            Quase sem cor, sem vida e sem coragem, George viu um mundo entregue ao caos e à barbárie. Chamou um táxi.
            Taxistas ainda precisam de dinheiro mesmo que seja o fim do mundo.
            “Levem-me à luz solar, à vida, ao futuro!” e a resposta era sempre: “Bandeira dois.”.
            Pagou em Euro, Dólar, Real... pagou pela sobrevivência.
            Foi levado até uma cordilheira, onde diziam estar a fronteira com o dia, o tão esperado dia!
            A escalada era por sua conta.
            Sessenta e oito horas.
            George, exímio burguês inútil, tinha que escalar os dias a mais, a vida perfeita, o fruto da luta! Tudo isso sozinho!
            Era frio. Muito frio. Gelo.
            Sem equipamento, sem força, sem coragem e sem motivos, George se pôs a subir rumo à luz.
            Reflexão.
            Setenta horas.
            Primeiro uma mão, depois um pé... sangue nos dedos e dor. Ah, como doía seu corpo, sua cabeça, sua memória!
            Pra quê tudo isso? Todo esse sofrimento?
            Seu corpo se dilacerou durante a queda e seus restos se uniram à parede de montanhas em forma de gelo.
            Não tinha mais motivos: Deus, família, verdades, mentiras.
            Não tinha nada.
            George não quis mais ser ator.
            Por ironia morreu branco, caucasiano e puro.
            Geneticamente Weber.
            Duas horas depois, sem nenhum motivo aparente, a Terra voltou a girar e o sol cumpriu seu papel.
            Luz, luz, luz...
            Um novo dia para todos.

                                                                Rafael Freitas 23/05/2009

           

            

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