quarta-feira, 28 de março de 2018

Sobre dias que poderiam não existir


Os ovos boiavam nas bolhas da água que fervia.
Dois.
Não se atentou ao tempo. A gema escorreu crua entre os dedos.
Sangue amarelo de um embrião que nunca existiu.
A cabeça doía há três dias.
Um dia, uma semana, um mês que era melhor não ter existido.
A vida escorria crua entre os dedos. Crua, sem preparo.
A tristeza de uma festa vazia.
A tristeza de um hospital lotado.
Não teve paciência de esperar o ovo cozinhar.
Odiava comidas cruas.
O ouvido zumbia.
Muito barulho por nada.
A vida toda.
Por nada.
Foi embora sem levar os anéis de ouro, os remédios de pressão, o creme de pitanga.
Todos vamos embora.
Não era hora.
Não teve paciência de esperar a vida amadurecer.
Ovos crus.
Sangue amarelo.
Nada de crisântemos. 
Esses dias poderiam não existir.

Rafael Freitas



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