Haviam se casado
há pouco tempo, mas a rotina e a ferrugem já contaminavam o dia-a-dia. Ele não
saía da frente da televisão, enquanto ela se apegava nas maiores inutilidades
de revistas sobre moda e vida de gente famosa. Tudo acontecia como acontece com
a maioria dos casais, até que veio a notícia da gravidez. Ele, além de não
gostar de crianças, sabia muito bem o trabalho que elas davam: tinha três
sobrinhos. Não queria ser pai, não queria responsabilidades. Queria uma TV a
cabo.
Ela? Ela adorou a idéia, apesar dos
enjôos e das quedas de pressão arterial. Sempre quis ser mãe, mas sabia de suas
limitações como esposa, dona de casa, advogada e motorista. Sua mãe adorou a
notícia: iria ser vovó pela primeira vez! Presenteou a filha com um guia
prático de gestação: O Manual da Gestante. Tudo estava ali: as mudanças
hormonais, os distúrbios psicológicos, o que comprar o que comer e até quais
seriam as reações do marido durante a gravidez.
Ele continuou deitado no sofá, e a
única certeza que tinha era a de que há poucos meses sua tranqüilidade teria um
fim. Ela lhe mostrou o manual e disse que aquela indiferença era esperada: “...
Segundo pesquisas, os maridos só aceitam a gravidez quando a barriga já está
grande. É a dificuldade do homem em abstrair.”.
Sua despreocupação era verdadeira,
mas seu espírito cristão não permitia que dissesse a verdade: acordava toda vez
que a mulher vomitava aos urros, acompanhou o pré-natal e até jantou algumas
vezes na casa da sogra. Afinal, o manual dizia que quando nasce uma criança é
necessário que nasça também um pai, uma mãe, avós... uma família tipicamente
burguesa e nuclear.
O casal comprou roupas, fraldas,
produtos infantis e brinquedos. O sexo já não fazia parte daquela relação que
não se baseava mais em homem e mulher: tornaram-se pai e mãe.
A
única diversão do marido eram algumas garrafas de cerveja durante as refeições e,
quando conseguia ficar sozinho, via pornografia na internet com a mão dentro
das calças. Numa dessas madrugadas clandestinas foi apanhado de surpresa. Não
deu tempo de tirar a mão e mudar de tela. A esposa caiu em prantos sentindo-se
trocada por uma vadia que talvez nem existisse de verdade. Correu até o manual
e desesperadamente procurou a resposta para seu sofrimento. E ela estava lá, na
página quarenta e sete: “... Procure entender a necessidade sexual de seu
marido. Os homens são menos resistentes às privações da gravidez, por isso
tendem à masturbação e à procura de material pornográfico.” Conseguiu o
conforto que procurava e mostrou a ele sua superioridade: trancou-se no quarto
e chorou no escuro daquela madrugada interminável.
Depois do acontecido ele tentou uma
aproximação estratégica levando a mulher para passear de mãos dadas, tomar
sorvete de baunilha e comer algodão doce na praça. Coisas típicas de um casal
apaixonado na década de trinta. Era uma pena ser o primeiro decênio do século
XXI.
Ela era insaciável: chorava toda
noite sem motivos aparentes, não suportava ver o marido sorrindo ou relaxado,
sempre queria atenção e toda atenção não lhe servia. Estava lá, na página
setenta e nove: “... Passado alguns meses, a sensibilidade da mulher aumentará
em grandes proporções. Isso mostra porque somente elas podem gerar uma vida: os
homens são insensíveis.”.
O resultado de toda essa
sensibilidade foi o aumento dos choros convulsivos e um esquecimento da figura
do marido. Para ele, esse esquecimento era ótimo: não tinha perturbações a todo
momento e podia se distrair com os brinquedos do filho. Mas brincar com os
brinquedos do filho era um retrocesso à infância, coisa seríssima, que merecia atenção
especial e tratamento psicológico. Estava escrito na página oitenta e quatro: “...
Seres humanos do sexo masculino, segundo pesquisas científicas, ao se deparar
com situações extremas, tendem a retroceder à fase infantil, devido à sua baixa
capacidade cerebral. Este é um quadro que merece certa preocupação, pois,
apesar da grande maioria ser apenas uma forma de chamar a atenção pelo
comportamento imbecil, pode se tornar patologia específica, tratável apenas por
medicação.” Todas os olhares se voltaram para ele, que nem queria tanta
exposição, e decidiu voltar ao sofá para evitar transtornos.
A presença da sogra em sua vida
havia se tornado freqüente e irritante, e ela fazia questão de apresentar sua
fonte teórica para tanta intromissão na vida do casal. Capítulo nove, página
cento e vinte cinco: “A presença da futura vovó é muito importante no período
de gestação, pois somente uma mulher que já passou por essa fase pode entender
o que a outra sente e orientar, com base no Manual da Gestante, a melhor forma
de conduta desde os primeiros meses até o parto.”.
Ele, com todo seu exercício de
paciência, agüentou firme cada segundo, cada repreensão, cada irritação e,
acima de tudo, cada frase do manual que, segundo a sogra e a esposa, era o mais
completo do mercado e não estava aberto a discordâncias.
Vagarosamente, passaram-se os nove
meses como se fossem nove séculos, e ele aguardava ansiosamente a chegada do
filho, mais pelo fato de que tudo voltaria ao normal do que pela felicidade de
ser pai. O manual dizia que era extremamente importante a presença do pai
durante o momento do parto e para não contrariar a esposa ele até filmou e
fotografou tudo, mesmo sentindo náuseas e tontura frente àquele procedimento
açougueiro chamado cesárea.
Foi o primeiro após os médicos a
segurar a criança e sentiu-se emocionado ao contemplar o resultado de todo
aquele processo doloroso que se encontrava agora em seus braços. Tanta
fragilidade resultava de um duelo de titãs. Isso era impressionante.
O manual dizia ser a volta pra casa
o momento mais emocionante e decisivo na vida do casal. Não pôde sentir esta
emoção, agora não existia mais casal. A sogra foi morar de vez com a filha.
Engoliu. Suportou. Silenciou.
Pagou contas, fez compras de
supermercado, comprou absorvente e fralda Pampers na farmácia. Era como se não
existisse mais. Sua esperança de voltar à vida simples de sofá e televisão
acabara com a frase que finalizava o manual: “... Depois de algum tempo a vida
voltará a ter normalidade, mas nunca mais será como antes.”.
Arrumou as malas e foi dizer adeus à
esposa, que apesar de tudo, foi um dia uma paixão. Pensaram em construir uma
vida juntos, sem saber que construir uma vida é algo cansativo e egoísta. Tentaram.
Toda tentativa tem chance de erro. Erraram. O preço de sua liberdade era a
pensão alimentícia, que pagaria sem rodeios, não sem reclamações. Esperava ser
compreendido em sua cerimônia de adeus, mas foi humilhado pelas duas mulheres.
O manual alertava sobre a covardia de alguns homens e, segundo elas, ele não
passava de um covarde.
Xingaram. Humilharam. Agrediram.
Ele controlou o máximo que pôde a
expressão de seu descontentamento, até que ultrapassaram seu limite. Trancou a
porta do quarto e cegamente acabou com a vida daquelas que atrapalhavam a sua.
Primeiro a sogra, que enforcou com o lençol. Depois a mulher, que matou a
golpes de manual. Trezentas e quarenta e duas páginas com capa dura: não havia
arma melhor.
Ao
final de tudo, procurou entre as folhas amassadas e ensangüentadas o que o livro
previa nessa situação. Não encontrou nada.
Rafael Freitas
Com certeza as próximas gerações o entenderão melhor...
ResponderExcluirAcho que já temos entendimento suficiente para entender o que está em questão...
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