terça-feira, 23 de setembro de 2014

As cartas que (não) escrevi

São rascunhos, pálidos e amarelados pelo tempo.
Guardados mais na memória que na velha caixa de um presente antigo.
As embalagens, quase sempre, duram mais que os presentes.
Os textos não publicados, não enviados, não digeridos parecem ter implorado o anonimato. Transparecem outros tempos, um outro autor que não eu.

Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas”
O Pessoa estava certo.
As pessoas que amam são tão ridículas quanto o que escrevem.
Pessoa e as pessoas. O autor e os anônimos.
Criei pseudônimos em outros tempos.
Tinha medo que descobrissem minha farsa ou minha perversão, quem sabe meus anseios, minhas fraquezas.
Ninguém conheceu meus codinomes: as cartas nunca foram enviadas.
Agora, estas mesmas cartas, fazem parte de um museu particular, um passado escrito à mão, borrado, sem subjetividade, em versos pobres.
Num mundo em prosa qualquer rima é soneto.
Já me senti poeta, Pessoa, hoje me sinto mais um, qualquer pessoa.
A vida é concisa, obtusa, sem rima, em prosa curta.
Talvez o tempo explique minha mudança.
Um tempo sem relógios, marcado por estações, por outonos infindáveis.
Lembro das nebulosas de Carina, dos boleros de Ravel, dos ciclos eternos, sem começo ou fim.
Não sei ainda qual foi a primeira carta escrita. Não tem datas, locais, nem horários. Tem apenas uma caligrafia à tinta que se modificou com o passar dos anos.
Vão todas para o lixo. O lixo raso da memória.
Pode ser que nunca mais escreva um poema de amor, pode ser que nunca mais ame, pode ser que nunca mais.
Sem remetente. Sem selo. Sem envelope.

                                                           Rafael Freitas