quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Manual da Gestante

     Haviam se casado há pouco tempo, mas a rotina e a ferrugem já contaminavam o dia-a-dia. Ele não saía da frente da televisão, enquanto ela se apegava nas maiores inutilidades de revistas sobre moda e vida de gente famosa. Tudo acontecia como acontece com a maioria dos casais, até que veio a notícia da gravidez. Ele, além de não gostar de crianças, sabia muito bem o trabalho que elas davam: tinha três sobrinhos. Não queria ser pai, não queria responsabilidades. Queria uma TV a cabo.
            Ela? Ela adorou a idéia, apesar dos enjôos e das quedas de pressão arterial. Sempre quis ser mãe, mas sabia de suas limitações como esposa, dona de casa, advogada e motorista. Sua mãe adorou a notícia: iria ser vovó pela primeira vez! Presenteou a filha com um guia prático de gestação: O Manual da Gestante. Tudo estava ali: as mudanças hormonais, os distúrbios psicológicos, o que comprar o que comer e até quais seriam as reações do marido durante a gravidez.
            Ele continuou deitado no sofá, e a única certeza que tinha era a de que há poucos meses sua tranqüilidade teria um fim. Ela lhe mostrou o manual e disse que aquela indiferença era esperada: “... Segundo pesquisas, os maridos só aceitam a gravidez quando a barriga já está grande. É a dificuldade do homem em abstrair.”.
            Sua despreocupação era verdadeira, mas seu espírito cristão não permitia que dissesse a verdade: acordava toda vez que a mulher vomitava aos urros, acompanhou o pré-natal e até jantou algumas vezes na casa da sogra. Afinal, o manual dizia que quando nasce uma criança é necessário que nasça também um pai, uma mãe, avós... uma família tipicamente burguesa e nuclear.
            O casal comprou roupas, fraldas, produtos infantis e brinquedos. O sexo já não fazia parte daquela relação que não se baseava mais em homem e mulher: tornaram-se pai e mãe.
            A única diversão do marido eram algumas garrafas de cerveja durante as refeições e, quando conseguia ficar sozinho, via pornografia na internet com a mão dentro das calças. Numa dessas madrugadas clandestinas foi apanhado de surpresa. Não deu tempo de tirar a mão e mudar de tela. A esposa caiu em prantos sentindo-se trocada por uma vadia que talvez nem existisse de verdade. Correu até o manual e desesperadamente procurou a resposta para seu sofrimento. E ela estava lá, na página quarenta e sete: “... Procure entender a necessidade sexual de seu marido. Os homens são menos resistentes às privações da gravidez, por isso tendem à masturbação e à procura de material pornográfico.” Conseguiu o conforto que procurava e mostrou a ele sua superioridade: trancou-se no quarto e chorou no escuro daquela madrugada interminável.
            Depois do acontecido ele tentou uma aproximação estratégica levando a mulher para passear de mãos dadas, tomar sorvete de baunilha e comer algodão doce na praça. Coisas típicas de um casal apaixonado na década de trinta. Era uma pena ser o primeiro decênio do século XXI.
            Ela era insaciável: chorava toda noite sem motivos aparentes, não suportava ver o marido sorrindo ou relaxado, sempre queria atenção e toda atenção não lhe servia. Estava lá, na página setenta e nove: “... Passado alguns meses, a sensibilidade da mulher aumentará em grandes proporções. Isso mostra porque somente elas podem gerar uma vida: os homens são insensíveis.”.
            O resultado de toda essa sensibilidade foi o aumento dos choros convulsivos e um esquecimento da figura do marido. Para ele, esse esquecimento era ótimo: não tinha perturbações a todo momento e podia se distrair com os brinquedos do filho. Mas brincar com os brinquedos do filho era um retrocesso à infância, coisa seríssima, que merecia atenção especial e tratamento psicológico. Estava escrito na página oitenta e quatro: “... Seres humanos do sexo masculino, segundo pesquisas científicas, ao se deparar com situações extremas, tendem a retroceder à fase infantil, devido à sua baixa capacidade cerebral. Este é um quadro que merece certa preocupação, pois, apesar da grande maioria ser apenas uma forma de chamar a atenção pelo comportamento imbecil, pode se tornar patologia específica, tratável apenas por medicação.” Todas os olhares se voltaram para ele, que nem queria tanta exposição, e decidiu voltar ao sofá para evitar transtornos.
            A presença da sogra em sua vida havia se tornado freqüente e irritante, e ela fazia questão de apresentar sua fonte teórica para tanta intromissão na vida do casal. Capítulo nove, página cento e vinte cinco: “A presença da futura vovó é muito importante no período de gestação, pois somente uma mulher que já passou por essa fase pode entender o que a outra sente e orientar, com base no Manual da Gestante, a melhor forma de conduta desde os primeiros meses até o parto.”.
            Ele, com todo seu exercício de paciência, agüentou firme cada segundo, cada repreensão, cada irritação e, acima de tudo, cada frase do manual que, segundo a sogra e a esposa, era o mais completo do mercado e não estava aberto a discordâncias.
            Vagarosamente, passaram-se os nove meses como se fossem nove séculos, e ele aguardava ansiosamente a chegada do filho, mais pelo fato de que tudo voltaria ao normal do que pela felicidade de ser pai. O manual dizia que era extremamente importante a presença do pai durante o momento do parto e para não contrariar a esposa ele até filmou e fotografou tudo, mesmo sentindo náuseas e tontura frente àquele procedimento açougueiro chamado cesárea.
            Foi o primeiro após os médicos a segurar a criança e sentiu-se emocionado ao contemplar o resultado de todo aquele processo doloroso que se encontrava agora em seus braços. Tanta fragilidade resultava de um duelo de titãs. Isso era impressionante.
            O manual dizia ser a volta pra casa o momento mais emocionante e decisivo na vida do casal. Não pôde sentir esta emoção, agora não existia mais casal. A sogra foi morar de vez com a filha.
            Engoliu. Suportou. Silenciou.
            Pagou contas, fez compras de supermercado, comprou absorvente e fralda Pampers na farmácia. Era como se não existisse mais. Sua esperança de voltar à vida simples de sofá e televisão acabara com a frase que finalizava o manual: “... Depois de algum tempo a vida voltará a ter normalidade, mas nunca mais será como antes.”.
            Arrumou as malas e foi dizer adeus à esposa, que apesar de tudo, foi um dia uma paixão. Pensaram em construir uma vida juntos, sem saber que construir uma vida é algo cansativo e egoísta. Tentaram. Toda tentativa tem chance de erro. Erraram. O preço de sua liberdade era a pensão alimentícia, que pagaria sem rodeios, não sem reclamações. Esperava ser compreendido em sua cerimônia de adeus, mas foi humilhado pelas duas mulheres. O manual alertava sobre a covardia de alguns homens e, segundo elas, ele não passava de um covarde.
            Xingaram. Humilharam. Agrediram.
            Ele controlou o máximo que pôde a expressão de seu descontentamento, até que ultrapassaram seu limite. Trancou a porta do quarto e cegamente acabou com a vida daquelas que atrapalhavam a sua. Primeiro a sogra, que enforcou com o lençol. Depois a mulher, que matou a golpes de manual. Trezentas e quarenta e duas páginas com capa dura: não havia arma melhor.
            Ao final de tudo, procurou entre as folhas amassadas e ensangüentadas o que o livro previa nessa situação. Não encontrou nada. 
                                                                             
                                                                                              Rafael Freitas

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Cachorro cego


Dentro de mim vive um cachorro cego
Que morde a esmo
E uiva a lua ao meio dia

Um cão que deseja amor platônico
Desses que não se sabe nem o nome
Nem endereço ou profissão

Pois quando se sabe o nome
Logo se descobre o que não se quer saber
Animalescas incompatibilidades

Dentro de mim vive um animal
Que escreve à pata suja
Poemas infindáveis de amor eterno

E no fundo sabe, sem duvidar
Que poemas de amor são como água:
Sem cor, cheiro ou paladar

Apenas carregam em si a vida
Que nunca se sabe se quem escreve
Realmente vive ou sente.

                                                                           Rafael Freitas

terça-feira, 12 de junho de 2012

O amor também morre de fome

Pendurei meu coração no varal
Exposto ao gosto do tempo
Ao pó, à fumaça, ao vento
Aos olhares, anseios, lamentos
Deixei meu coração bem à mostra
Para que não restassem mais dúvidas
Nem preciso fosse intervenção cirúrgica
Pra se ver em meu peito o amor
Sentimento tão nobre, tão belo
De sabor agridoce, suculento
Necessário ao mais vil purulento
Que vegeta só em seu desalento
Essa dependência estranha
Que em meu coração ainda existe
Entre a dor e o amor que resiste
Não me faz encontrar solução
Cubro o órgão vital com sal grosso
Carne seca, tenra e sem osso
E em farofa saciar minha amada
Com pimenta na hora do almoço
Sei que vai lamber todo prato
Prato estranho e ainda sem nome
Feito gente que sabe e que sente
O amor também morre de fome.

                                          Rafael Freitas

terça-feira, 5 de junho de 2012

A segunda tempestade

Para Solange.


Eu quero a solidão ordinária dos dias turbulentos
Regados à chuva e barulho de locomotivas
Trilhados pela algazarra da tempestade em telhas de zinco
Pelas pessoas falando alto sob os toldos das farmácias
Com as barras das calças molhadas e enlameadas
Com os cabelos úmidos e os óculos embaçados
Com a fumaça dos cigarros seguindo caminho contrário à rua
Com as velhas gordas de guarda-chuva que trafegam encharcadas
Pelas ruas de trânsito engarrafado e semáforos quebrados
Pela vida de querer carro e entrar no mesmo esquema
Deixar pra trás os assentos das monaretas com sacolas plásticas
E as costas das camisetas cheias de respingos de barro sujo
E o cheiro de urina e fezes de cachorros molhados e gente também
Eu quero a solidão destes dias em que ninguém se fala
Todos se odeiam ao lembrar das roupas que estão nos varais
E da casa que entra água por baixo da porta da sala e o tapete é novo
E ninguém tem tempo e todo mundo tem pressa e nada a dizer
Os acenos são quase imperceptíveis e os olhares vazios
Os dias de calor e sol e céu sem nuvens são mais dialogáveis
Mas, mesmo assim, eu quero a solidão destes dias sem sol
Hoje eu quero ser sozinho, sem assunto e em síntese conciso
Os dias cinzas não mascaram a incolor alma humana
Que em seu virar de páginas carrega em si a tempestade.

                                                                                         Rafael Freitas

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Terceira Carta


“Quando a chuva congela, vira granizo!”.
E, mais uma vez, meus olhos encheram-se d’água. Pura felicidade ao vê-lo feliz.
Seus olhos de descobrimento e de posse do assunto me dominam a cada frase, a cada respiração.
Agora você é super-herói, depois uma estátua, depois um piloto de fórmula 1.
No que depender desse pobre espectador, você pode ser o que quiser!
            Não me canso de lhe abraçar até meu olhar formar maré e o corpo estremecer. Se a nobreza do amor existe, ela está no seu dormir no banco de trás do carro, no esconder-se sob makurás, na explicação das Babuchas de Abu Kasem, no suco em pó sabor morango bebido aos goles, na bala que o papai trouxe da “igreja”, nos passos dos Ramones na hora do almoço, na teimosia na hora do banho e de escovar os dentes.
Deus se aproximou de mim em seu primeiro choro.
A cada dia sou um novo homem que conta histórias suas para todos e não se cansa de pensar em uma forma de lhe agradar e apresentar sempre um mundo cheio de surpresas.
Eu não sou um superpai. Sou humano. Cheio de imperfeições e amor incondicional.
Você sempre será meu super-herói e minha kryptonita.
Depois pode ser estátua, piloto de fórmula 1...

                                                                              Rafael Freitas