quarta-feira, 26 de junho de 2019

Iguais aos primatas


Era uma vez um zoológico.
ZooDarwin.
Lá havia jaulas gigantescas, muito povoadas, em constante agitação: a ala dos primatas.
Adolfo era o tratador dessa enorme ala dos primatas.
Todos os dias, Adolfo reunia sua equipe de profissionais bem treinados e especialistas em primatas e passava de jaula em jaula, servindo alimentação balanceada, administrando medicação aos enfermos, distribuindo sorrisos e carinho.
Adolfo não pedia nada em troca, afinal era seu trabalho cuidar dos belos e inteligentes símios do tão famoso ZooDarwin.
Mesmo não pedindo nada em troca, o carinhoso tratador de animais sentia-se muito (muito mesmo) feliz e satisfeito ao ver que os bichanos retribuíam seus afetos imitando seus gestos.
Era uma grande festa quando todos percebiam a chegada de Adolfo e sua equipe.
Certo dia, Adolfo teve a brilhante ideia de criar uma coreografia com os animais, com a certeza de sucesso entre os visitantes do Zoo.
Depois de vários ensaios, com adesão quase geral da macacada, marcou-se o primeiro show.
Grande público se fez presente no ZooDarwin, mais precisamente na ala dos primatas.
O coreógrafo Adolfo estava deveras ansioso com a grande estréia de seu “Balé Animal”.
Silêncio no público. Após a contagem regressiva feita lentamente por Adolfinho dos Macacos, iniciou-se o grande baile.
Todos da ala dos primatas imitavam com perfeição os passos decorados e ensaiados e programados e inventados por Adolfo e sua equipe.
Todos da ala, exceto um pequeno chimpanzé, o Randle Patrick McMurphy, mais conhecido como Ran.
Ran achou a dança muito complicada e pensou também que aquilo na verdade nem era coisa de macaco.
Mesmo assim o pequeno Ran queria assistir aos amigos dançarem e ficou encostado na grade, junto ao público, para apreciar o espetáculo.
Ran, que nem queria isso, chamou mais a atenção de todos do que o show preparado com amor por Adolfo.
Todos aplaudiram o símio espectador e até gostaram (um pouco) do espetáculo.
Ran despertou a fúria do tratador de primatas, que tentou, sem sucesso e de diversas formas, ensinar a coreografia ao macaquinho espectador.
Recorreu a grandes pensadores, a outros tratadores, a seus auxiliares mas nada, nem ninguém, pôde reverter o quadro de não-imitação do pequeno chimpanzé.
Na semana seguinte, após comentário geral no ZooDarwin, nova apresentação foi marcada.
Novamente casa lotada. Show impecável.
Ninguém perguntou por Ran, que foi trancado na jaula dos leões provisoriamente para não atrapalhar a coreografia e não desviar a atenção do público.
Randle Patrick McMurphy, o pequeno chimpanzé que não queria dançar, nunca mais foi visto na ala dos primatas nem em qualquer lugar do ZooDarwin, onde só os mais preparados sobrevivem.

Rafael Freitas



segunda-feira, 10 de junho de 2019

Que seja assim


Hoje decidi cuidar de mim.
Talvez pareça uma decisão fácil e simples, mas não!
Cuidar de mim implica deixar os demônios em paz.
Deixá-los em seus sarcófagos cobertos de poeira e teias de aranha.
O óbvio seria eu cuidar sempre de mim.
O óbvio ainda precisa de atenção.
Decidir cuidar de mim não significa êxito.
Pode até ser uma missão sem objetivo, sem finalidade.
Olhar para dentro, pensar nos detalhes do caminho, antes tarde...
Cuidar de um jardim abandonado é trabalhoso.
A vida dá trabalho.
A morte ainda trabalha, no silêncio das noites frias, na vizinhança antiga da minha infância.
As estações se misturam nas manhãs geladas com tardes sufocantes.
Dias longos e silenciosos.
Hoje, só por hoje, vou me demorar mais nos pequenos prazeres.
Hoje, mais que ontem, vou descansar a coluna do peso de um planeta.
Vou dormir quase em paz.
Amanhã, bem cedo, não sei se meu pensamento será igual.
Pode ser que tudo se vá com o nascer do sol.
Mas pretendo, antes tarde, cuidar de mim.
Que assim seja.
Que, só por hoje, seja assim.

Rafael Freitas


quarta-feira, 5 de junho de 2019

Quem mais odeia


Esse seu feminismo barato
De quem não lava as próprias calcinhas
De quem não conhece Simone
Nem leu o seu Beauvoir

Esse seu comunismo de grife
De quem julga os pais uns otários
De quem explora os próprios amigos
Diz pensar no proletário

Esse seu senso crítico de merda
De quem só entende o que convém
De quem explica o que não sabe
De quem já não engana ninguém

Cercada de falsos amigos
Essa sua luta é mesquinha
Repleta de falsos heróis
Lutando sempre sozinha

Um dia o sonho se esvai
Em seu rebanho, nenhuma ovelha
Levará sua vida vazia
À custa de quem mais odeia

Rafael Freitas