terça-feira, 20 de outubro de 2020

Consertos para a juventude

 Corretores ortográficos são a prova de que um deep state nos controla.

Controle absoluto até dos erros ortográficos tupiniquins.

Corretores de expressão, de pensamento.

Atrás das máscaras são universos oprimidos.

Transformados em pedras de roseta nunca lidas.

Não sabemos do antes, muito menos do agora.

O que virá depois?

Corretores de postura.

Corretores de ideias.

Corretores de falas.

Corretores de corretores.

Com tanta correção, onde estão os acertos?

Concertos.

Consertos para a juventude.

 

Rafael Freitas



quinta-feira, 30 de abril de 2020

A força


Há onze anos espero essa véspera de primeiro de maio.
Dia do trabalho.
Em seu início, essa comemoração tinha o nome de Dia do Trabalhador.
Deve ser porque, em tempos remotos, a vida talvez tivesse mais valor que o mercado.
Talvez fosse um tempo em que o trabalho era nobre e não um desespero atrás do pão.
Pão que está em falta.
Pão que vem aos poucos e com muito sofrimento nesses dias sombrios.
Tem alguns dias que não o vejo.
O mundo está doente e quer contaminar todos com suas tristezas.
Penso todos os dias na sua liberdade que está restrita, na sua bicicleta empoeirada, nos abraços que estou devendo.
Nesse momento em que pastores guiam seus rebanhos ao precipício do medo, em que somos representados pelo velho ódio que se travestiu de novo amor, em que a vida humana ecoa em “e daí?”, precisamos, cada vez mais e mais urgente, da luz das estrelas, da paz, de você.
Esse sorriso que me consola e me energiza.
Esse cheiro de filho, de luta, de não desistir.
Essa força que carrega com paciência.
A energia ancestral das ocassans, batians e ditians.
A sabedoria das Isauras, Litas, Cidas, Noilas e Karinas.
O amor do avô e do pai.
Você carrega em si todo sentimento do mundo e está pronto para o bom combate.
Parabéns, meu filho.
Meu eterno menino que sempre caberá em meus braços.
Amo você. Muito.
“Cresça, independente do que aconteça.
Eu não quero que você esqueça que eu gosto muito de você”.

May the force be with you.

Rafael Freitas


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Vigésimo primeiro dia


Era dia 21.
Era feriado.
Já não fazia diferença aquela homenagem prestada a um herói nacional em forma de dia de descanso.    
Quase tudo, em vinte e um dias, não fazia mais sentido.
Os carros eram desnecessários sem poder trafegar, entupindo semáforos, também desnecessários.
Era estranho como as coisas sem valor de outrora ganharam novos significados.
Encontrou alguns discos de vinil empoeirados no canto do quarto de despejo.
Todos talvez se sentissem como aqueles discos de vinil: empoeirados pelos cantos dos quartos de despejo.
Tirou o pó das capas, reconectou os cabos do velho NATIONAL, que já estava embalado para ir para o lixo.
Encontrou várias raridades, que em outro momento causariam inveja em qualquer colecionador. Com tempo de sobra, resolveu ouvir a pouca herança recebida do avô.
Chiado de agulhas. A importância de se prestar atenção ao que ouve, virar o disco.
Algumas coisas sempre serão fora de moda, mesmo em seu próprio tempo.
Entre alguns risos discretos e algumas lágrimas nos olhos teve um despertar: tudo fazia sentido, tudo já foi dito em algum momento.
Há dez mil anos atrás já se previa esse dia em que a Terra parou.
Sim! Conexão direta, universal.
Apressadamente, num ímpeto de descoberta, abriu a velha estante e reencontrou os velhos Orwell, Huxley, Kundera e Sartre.
Uma náusea se fez presente. Vertigem. O mundo se movia como a beira de um abismo. Precisava de algum remédio. Uma dose de endorfina, prazer, desconexão.
Era dia 21, um revolucionário quis a liberdade.
O ir e vir desorientado, incessante e sem motivo dos dias normais ganhava direção e sentido até mesmo nas prisões regadas à cerveja do período domiciliar.
Tudo se conectava, os velhos profetas injustiçados tinham razão.
Apocalipse now.
O Universo se movia em seus pensamentos como uma eterna espiral.
Tudo era uma coisa só.                            
As palavras, repetidas incansavelmente, transmutavam-se em mantras, orações, a língua dos anjos.
A loucura mostrava sua cara, seus tentáculos, suas garras.
Por que agora?
Tudo sempre esteve ali, mas nunca foi notado.
O essencial é invisível aos olhos e quando pode ser visto fingimos não enxergar.
Seu grito rompeu o silêncio da rua deserta.
Silêncio.
Ainda havia uma esperança.
Haviam muitas esperanças.
Reescrever a história, fugir das previsões, o despertar do mundo.
Todos eram um.
Havia muito a se escrever, a se dizer, a se ouvir.
A destruição do que era precioso foi só o começo de um novo tempo.
R.E.C.O.M.E.Ç.O.
Havia enlouquecido?
Não.
Louco era antes.

                                                                                  Rafael Freitas


sábado, 11 de janeiro de 2020

Para Blake

Para Blake Edwards

Amanhã esse pensamento se transformará em palavras, dispostas enfileiradas, na perfeita harmonia.
Amanhã essa harmonia dispersa, feito um quebra cabeça, talvez se torne um hino, entoado por vozes chorosas em um dia seis de janeiro.
Amanhã esse hino de Reis contará sua história repleta de imaginação, feito o carneiro matado e sem pés, das roupas lavadas a mão.
Amanhã sua história será diferente, bonita e repleta de gente aos berros, que você não enxerga e não devolve um sorriso, nem dispensa atenção.
Amanhã esse sorriso sem dentes por medo de anestesia, cheio de resiliência, será menos pecado, afinal, rir é um mal humano.
Amanhã a resiliência, que  hoje exige dureza, será leve e tranquila e o carneiro em pé entrará no paraíso dos terços da misericórdia às três horas da tarde.
Amanhã talvez a gente se entenda e se conheça depois de tantos anos, embora nossa história seja para depois.
Uma história para se entender somente depois de amanhã.

Rafael Freitas