terça-feira, 1 de agosto de 2017

Sobre sabedoria e supermercado

Acordei cansado. Muito cansado por uma noite quase insone.
Penso há dias numa dívida que tenho e que, por causa dela, já acumulei mais algumas.
Não gosto de dívidas. Não gosto de me sentir em dívida. Não sei viver assim.
Levantei à flor da pele, sangue nos olhos, à espera. Não sei do que, como sempre.
Acabei maltratando algumas pessoas, acabei brigando com outras. Aparentemente sem razão: mas não, existia e ainda existe uma maldita dívida martelando meus pensamentos.
Talvez não devesse me importar com isso. Conheço tanta gente assim (ou pelo menos fingem bem).
Não aprendi com meu pai, o cara mais honesto que conheço, a dever, nem dinheiro, nem favor, nem satisfação a ninguém.
Enfim, por um problema meu, arrumei outros problemas, por uma dívida arrumei outras dívidas.
Dia longo. Cansativo. Moscas paradas no ar. Crianças falando alto, correndo, brigando umas com as outras.
Tenho me esforçado imensamente, estudado, lido, orado e meditado diariamente na tentativa de ser uma pessoa melhor.
Sinto que estou conseguindo, dia sim, noventa dias não.
Quatro dias sem fumar. Acabei de acender um cigarro.
Antes, corri pra ver meu filho mais velho, que de tão pouco tempo dedico a ele, logo esquecerá meu nome. Meu filho mais novo? Idem.
Depois, arrastando as pernas, bocejando aos montes, fui ao supermercado. Afinal meu armário se assemelha a uma dispensa de um bunker em plena segunda guerra: macarrão e enlatados.
Telefone dá sinal de mensagem. Estão me oferecendo a chance de ganhar muito dinheiro sem sair do meu emprego. Pena não poderem me falar por mensagem, querem uma reunião. Ao menos uma piada num dia sem graça.
Passo as compras. A cerveja se chama Proibida. Nome idiota num país de alcoólatras.
Passo cartão, não me lembro o saldo que havia alguns minutos consultado.
Consulto novamente, atraso o andamento.
A caixa, solícita e educada me diz que é assim mesmo, fim do dia estamos cansados.
Pensei no dia dela. Acabará às nove da noite. Não sei se vai embora a pé, se mora longe, se tem filhos. E se esqueceu a blusa de frio? E se os filhos forem crianças sozinhas em casa?
Que merda. E eu, idiota num mundo de alcoólatras, preocupado com minhas dívidas, que se multiplicam e viram brigas.
Paguei a conta, ela compreensiva: Nossos filhos estão ficando como a gente, sempre correndo, logo cedo atrasados pra escola. Pra quê tudo isso, né moço?
Eu: Pra quê?
Encontrei meu filho saindo do supermercado junto com a mãe.
Ganhei um susto e um abraço.

Talvez tudo valha à pena. Desculpem por hoje. Vou dormir.

Rafael Freitas


domingo, 30 de abril de 2017

Envelheço na cidade

“Feliz aniversário, envelheço na cidade”...
Estou realmente envelhecendo. Seguindo o ritmo normal da vida.
As ressacas são intermináveis, os livros intermináveis, o sono interminável...
Até o que dava prazer está ficando cinza, enfadonho.
Dá preguiça. Expor pensamentos, pontos de vista, dá preguiça.
Tenho a impressão que parte do mundo vive uma eterna quinta série. Uma cegueira branca, meio Saramago.
Essas coisas da vida real, que há alguns anos atrás eu via como piadas mal contadas, cansam.
Ainda bem que você está comigo.
Agora, mais do que nunca, ensinando, a mim e a quem se interessa, coisas boas da vida, dos bons papos que se perderam.
Hoje é seu aniversário e eu envelheço.
Feliz por você e com você.
Você, que mudou minha vida, meu modo de pensar e agir, desde o primeiro instante.
Você é amado, foi gerado com muito carinho.
Tem meu empenho, meus pensamentos e minhas orações.
O mundo, infelizmente, continua a mesma piada que era em minha juventude.
Mesmo assim, há oito anos, tenho esperança.
Tenho certeza de sua revolução. Tenho certeza de que um propósito maior nos aguarda.
Você está pronto.
Meu artista, ciclista, pintor, poeta, leitor, tecnólogo, pesquisador.
Meu filho querido e esperado todos os dias.
O texto não era pra ontem?
Não.
É hoje.
Hoje.
Amanhã é amanhã!

We need change, we need it fast
Before rock's just part of the past
'Cause lately it all sounds the same to me
Wow, wow, oh
Rock n'
Rock n' roll radio
Let's go


                                          Rafael Freitas


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

Pedro

Sempre fui um espectador assíduo dos filmes do Jason.
Sexta-feira 13, em seus inúmeros volumes, sempre me disse alguma coisa sobre os seres humanos em sua forma hedonista de vida, sua maneira animal de conviver.
Nesses filmes trash de terror, quase sempre, as vítimas tem um lado obscuro, uma maldade que as leva ao fim trágico esperado por quem assiste.
Ainda pré adolescente, entrei escondido, ou achei que estivesse assim, no cinema para assistir Jason vai para o Inferno. Foi uma aventura que me rendeu belos dias de insônia e pesadelos.
Mas não vou falar da Hora do Pesadelo. Esse é outro filme.
Foi justamente numa sexta-feira 13, há dois anos atrás, que você surgiu em minha vida.
No dia de um dos meus personagens favoritos.
Estou um pouco atrasado. Daqui poucos minutos já não é mais dia 13 e hoje não é sexta-feira.
Sempre me atraso. Vivo correndo a esmo, à procura de não sei o que.
Encontramos-nos num acaso. O acaso nos ensina muita coisa.
As pessoas são diferentes. Muito.
Os filhos são diferentes. Os dedos da mão e do pé também.
Você, em sua estréia numa sexta-feira 13, é meu personagem favorito.
Não somos coadjuvantes.
Nosso filme não é um terror.
Nossa entrada, mesmo escondida, nesse cinema, não nos trará pesadelos.
Temos e teremos sempre boas histórias, belos sorrisos, boas lembranças.
Acima de tudo, um lindo e imenso agora.
O amor não permite ensaios. Vamos viver.
Feliz aniversário, meu pequeno cantor arteiro.
Somos, nós três, um presente que a vida nos deu.
Amo você.

God save the Queen!


                                         Rafael Freitas


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Bom dia, sol

A maternidade estava em silêncio.
Ninguém queria falar sobre o fato. O erro médico, o afogamento, as lágrimas e orações de um pai ateu.
Ninguém assumiu a culpa. De quem era?
Talvez um carma fosse vivido naquele momento.
Talvez: a palavra que explicaria toda vida desde então. O estar entre. Nem lá, nem cá.
O bebê estava morto. Quase morto. Era questão de tempo.
Respiração ofegante em seu pequeno peito.
Um frango doente, último suspiro.
Não havia mais esperança.
Havia o silêncio.
O silêncio que sempre houve antes de tudo.
A fé que nascia entre todos era quase um apelo ao tempo. Que fosse logo, indolor.
Sangue, transfusão.
Capela, oração.
Não se sabe como. Talvez esse fosse mesmo o destino.
Não se sabe como, o pequeno pedaço humano, pálido, ofegante, chorou.
Não foi dessa vez.
Como seria?
Passados trinta e poucos anos, a palavra ainda estava lá: talvez.
O meio.
O barco a esmo à procura de nada. Qualquer porto, qualquer ilha, qualquer lugar seria um destino.
Talvez a noite passada não fosse tão triste se estrelas habitassem o céu.
A chuva fria, os trovões assustadores mostravam que talvez a vida fosse isso: a busca incessante pelo silêncio.
Não aprendeu em tantos anos muita coisa sobre as pessoas.
Ficou preso nos segundos de um afogamento. Num mundo solitário de um útero que oferecia conforto e perigo ao mesmo tempo.
Em seu casulo mental nunca entendeu a pretensão de relacionamentos nem a falta de liberdade a que as pessoas se sujeitam.
A sociedade talvez exista para que úteros não sejam rompidos, deixados pra trás.
O mundo é seu, mas como abraçá-lo sem se perder em si mesmo?
Tudo é muito confuso agora. Assim como tudo era confuso em outros tempos.
Ser livre é coisa muito séria.
Talvez esse seja o momento de não se fazer mais escolhas, deixar o ventre rumo ao desconhecido, entregar-se sem esperar.

Bom dia, sol.

                                                        Rafael Freitas