quarta-feira, 31 de julho de 2019

Tarde demais para acordar


Tem dias que acordamos com a sensação plena de que tudo está perdido.
E, na verdade, tudo está.
Somente está.
No mesmo lugar de sempre.
Tudo em seu lugar.
O que está perdida é a sensação de que estamos no lugar certo.
Lugares certos não existem.
Existissem lugares certos, não haveria evolução.
O bicho se cansou da água e quis morar na terra.
O Universo se cansou do bicho e mandou um meteoro, fogo, fome e morte.
Aí, vieram outros bichos.
Sempre virão outros bichos.
Tem dias que dá vontade de esquecer tudo que sabemos sobre bichos, fome e morte.
Esses bichos que aqui estão não chegaram ao fim da evolução.
Nunca chegarão.
Em breve, muito em breve, o Universo vai repetir o seu cansaço.
Conhecer é caminho sem volta, que quase sempre causa mais sofrimento que felicidade.
Um dia o esquecimento vem, mas aí já é tarde.
Tarde demais para sermos obrigatoriamente felizes, sem questionamentos.
Tarde demais para acordar.

Rafael Freitas


quarta-feira, 26 de junho de 2019

Iguais aos primatas


Era uma vez um zoológico.
ZooDarwin.
Lá havia jaulas gigantescas, muito povoadas, em constante agitação: a ala dos primatas.
Adolfo era o tratador dessa enorme ala dos primatas.
Todos os dias, Adolfo reunia sua equipe de profissionais bem treinados e especialistas em primatas e passava de jaula em jaula, servindo alimentação balanceada, administrando medicação aos enfermos, distribuindo sorrisos e carinho.
Adolfo não pedia nada em troca, afinal era seu trabalho cuidar dos belos e inteligentes símios do tão famoso ZooDarwin.
Mesmo não pedindo nada em troca, o carinhoso tratador de animais sentia-se muito (muito mesmo) feliz e satisfeito ao ver que os bichanos retribuíam seus afetos imitando seus gestos.
Era uma grande festa quando todos percebiam a chegada de Adolfo e sua equipe.
Certo dia, Adolfo teve a brilhante ideia de criar uma coreografia com os animais, com a certeza de sucesso entre os visitantes do Zoo.
Depois de vários ensaios, com adesão quase geral da macacada, marcou-se o primeiro show.
Grande público se fez presente no ZooDarwin, mais precisamente na ala dos primatas.
O coreógrafo Adolfo estava deveras ansioso com a grande estréia de seu “Balé Animal”.
Silêncio no público. Após a contagem regressiva feita lentamente por Adolfinho dos Macacos, iniciou-se o grande baile.
Todos da ala dos primatas imitavam com perfeição os passos decorados e ensaiados e programados e inventados por Adolfo e sua equipe.
Todos da ala, exceto um pequeno chimpanzé, o Randle Patrick McMurphy, mais conhecido como Ran.
Ran achou a dança muito complicada e pensou também que aquilo na verdade nem era coisa de macaco.
Mesmo assim o pequeno Ran queria assistir aos amigos dançarem e ficou encostado na grade, junto ao público, para apreciar o espetáculo.
Ran, que nem queria isso, chamou mais a atenção de todos do que o show preparado com amor por Adolfo.
Todos aplaudiram o símio espectador e até gostaram (um pouco) do espetáculo.
Ran despertou a fúria do tratador de primatas, que tentou, sem sucesso e de diversas formas, ensinar a coreografia ao macaquinho espectador.
Recorreu a grandes pensadores, a outros tratadores, a seus auxiliares mas nada, nem ninguém, pôde reverter o quadro de não-imitação do pequeno chimpanzé.
Na semana seguinte, após comentário geral no ZooDarwin, nova apresentação foi marcada.
Novamente casa lotada. Show impecável.
Ninguém perguntou por Ran, que foi trancado na jaula dos leões provisoriamente para não atrapalhar a coreografia e não desviar a atenção do público.
Randle Patrick McMurphy, o pequeno chimpanzé que não queria dançar, nunca mais foi visto na ala dos primatas nem em qualquer lugar do ZooDarwin, onde só os mais preparados sobrevivem.

Rafael Freitas



segunda-feira, 10 de junho de 2019

Que seja assim


Hoje decidi cuidar de mim.
Talvez pareça uma decisão fácil e simples, mas não!
Cuidar de mim implica deixar os demônios em paz.
Deixá-los em seus sarcófagos cobertos de poeira e teias de aranha.
O óbvio seria eu cuidar sempre de mim.
O óbvio ainda precisa de atenção.
Decidir cuidar de mim não significa êxito.
Pode até ser uma missão sem objetivo, sem finalidade.
Olhar para dentro, pensar nos detalhes do caminho, antes tarde...
Cuidar de um jardim abandonado é trabalhoso.
A vida dá trabalho.
A morte ainda trabalha, no silêncio das noites frias, na vizinhança antiga da minha infância.
As estações se misturam nas manhãs geladas com tardes sufocantes.
Dias longos e silenciosos.
Hoje, só por hoje, vou me demorar mais nos pequenos prazeres.
Hoje, mais que ontem, vou descansar a coluna do peso de um planeta.
Vou dormir quase em paz.
Amanhã, bem cedo, não sei se meu pensamento será igual.
Pode ser que tudo se vá com o nascer do sol.
Mas pretendo, antes tarde, cuidar de mim.
Que assim seja.
Que, só por hoje, seja assim.

Rafael Freitas


quarta-feira, 5 de junho de 2019

Quem mais odeia


Esse seu feminismo barato
De quem não lava as próprias calcinhas
De quem não conhece Simone
Nem leu o seu Beauvoir

Esse seu comunismo de grife
De quem julga os pais uns otários
De quem explora os próprios amigos
Diz pensar no proletário

Esse seu senso crítico de merda
De quem só entende o que convém
De quem explica o que não sabe
De quem já não engana ninguém

Cercada de falsos amigos
Essa sua luta é mesquinha
Repleta de falsos heróis
Lutando sempre sozinha

Um dia o sonho se esvai
Em seu rebanho, nenhuma ovelha
Levará sua vida vazia
À custa de quem mais odeia

Rafael Freitas



sexta-feira, 31 de maio de 2019

Insatisfação


A amargura secou os lábios
Escureceu os olhos
Empalideceu a face
Amoleceu os ossos

O sofrimento tirou a luz
Amarelou os dentes
Ressecou a língua
Apodreceu a carne

O egoísmo tirou a vida
Zumbiu os ouvidos
Perdeu o senso
Desorientou a direção

A felicidade se escondeu
Procurando brecha
Em meio a tanta
Insatisfação

Rafael Freitas



terça-feira, 30 de abril de 2019

Dez anos em Saturno


“Te amo, isso eu posso te dizer, como eu gosto de você, ah, como eu gosto de você!”
Mais de seis mil dias em Marte.
Acordei com esse tempo nas costas nesse trinta de abril.
Não habitei mais este mundo desde que conheci seu olhar cheio de vontade, de força, de esperança.
Duzentos e noventa anos em Saturno.
Quase uma eternidade bíblica, uma vida inteira sua, grande parte da minha, que diante de um universo não é quase nada.
Um universo de coisas a se conquistar, coisas que, conquistadas sem amor, não significam nada.
Cento e vinte anos em Júpiter.
E nessa centena de milhares de abraços, nesse infinito de entendimento em olhares, nesse tempo de compreensão mútua, recebi muito mais do que ofereci, doei mais de mim do que imaginei que pudesse fazer.
Completamos esse ciclo juntos, um ciclo pequeno frente à capacidade do seu coração, frente à capacidade do meu coração em amar alguém.
Que nosso futuro seja o caminho repleto das flores que semeamos.
Você sabe das coisas e as explica melhor do seu jeito do que eu tentando ser acadêmico.
E, quase sempre, explica o mundo.
Você está pronto.
Sinto pesar em saber que um dia, talvez em breve, você encontre novos caminhos e nossa rotina se afaste uma da outra.
Ao mesmo tempo, tenho muito orgulho por ter certeza de que, esteja onde estiver, você será a luz que iluminará seus passos e o caminho de outras pessoas.
O acaso pode até separar nossas rotinas, mas meu pensamento, meu coração e minhas orações estarão sempre contigo.
Estive, estou e estarei aqui, todo o tempo.
O mundo é seu, meu filho, meu amor, meu Pequeno Ramone!

Rafael Freitas



quarta-feira, 24 de abril de 2019

Todo mundo é mais feliz


Todo mundo é mais feliz que eu.
Ao menos todos sorriem mais.
Ao menos publicam fotos sorrindo.
Talvez, todos se incomodem menos do que eu.
As almas incomodadas nunca estão satisfeitas, nunca se realizam e quase nunca sorriem.
Todo mundo parece ser mais feliz que eu.
Logo eu, que sempre soube o que queria da vida.
Logo eu, que sempre achei que soubesse o que queria da vida.
Logo eu, que sempre achei que soubesse algo.
E agora, com o tempo passado, eu que achei que soubesse, não sei nem onde estou.
Não que esteja perdido.
Não que não tenha uma casa.
Não que não tenha ninguém.
É que não tenho encontro.
Não tenho esse encontro com caminhos, com casas, com pessoas.
Todo mundo acha que parece ser mais feliz que eu.
Ao menos republicam imagens, por mais antigas que sejam.
Talvez a felicidade more sempre no passado, no “eu era feliz e não sabia”.
“...e não sabia”. Talvez a felicidade more na ignorância.
O não saber pode ser a chave para o mundo mágico de Alice.
O País das Maravilhas.
É que eu desisti de ser o adulto dos meus sonhos de vinte anos atrás.
Todo mundo sonhou um dia.
Todo mundo sonhou que achava que parecia ser mais feliz que eu.
Eu acho.
Acho mesmo.
Que estamos todos no mesmo barco.
Tenho certeza.

Rafael Freitas





segunda-feira, 22 de abril de 2019

Frente a frente


Frente a seu amor serei preciso
Incisivo feito fosse uma navalha
A alma estática frente ao paraíso
O corpo em chamas feito uma fornalha

Frente a seu amor serei contido
O medo faz o vil vencer grandes batalhas
Camuflado em sangue e pó se for preciso
Escondendo a dor feito um canalha

Frente a seu amor serei preguiça
O trabalho cansa a mais nobre alma
Serei rendido por condenáveis vícios
Sem me tornar estorvo (desgosto) em sua cama

Frente a seu amor serei como você
Quero entender como você se agüenta
Quero entender tudo sobre cinismo
E essa breguice dos anos noventa


Rafael Freitas





sexta-feira, 22 de março de 2019

Queda livre


Era uma enorme e bela queda livre
Vento forte, cabelos soltos, por toda parte
Um corpo ainda quente em queda livre
Sentindo-se finalmente desprendido
Era linda a visão daquela queda livre
Abria a boca e os olhos o vento forte, cabelos
Pesava quase nada o corpo em queda livre
Que agora, depois de tanto, sentia-se liberto
A liberdade que se busca toda a vida
Estava em alguns segundos em pleno ar
A liberdade que não se compra e não se vende
Caía feito pena, feito rocha, feito fosse luva
A liberdade, meus amigos, caía bem
Ser livre cai bem a todo mundo, tenha certeza
A liberdade, meu caro, quando toca o solo
Não passa do recomeço de uma prisão

Rafael Freitas





terça-feira, 19 de março de 2019

O que não é belo


Ando com o argumento gasto
Como um sapato velho
Que ainda me serve
Mas está consumido e furado
Ninguém deseja coisa usada
O que é sujo, imundo
Não serve nem aos porcos
Que serão presunto
Ando com as idéias tortas
Não como a torre em Pisa
Idéias que não rendem beleza
Nem belas fotografias
E o que não é belo
Não serve a ninguém
O mundo esconde o feio
Como se não existisse
A felicidade anda a prazo
Daqui a pouco reaparece
Talvez pré-datada
Talvez hoje ou nunca mais
O que nos resta é esperar
Como se o tempo jamais passasse
Como se o rio não mais corresse
Como se não houvesse um final.

Rafael Freitas




quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Novos horizontes


Não ficou pedra sobre pedra.
Nenhum rastro se encontrava sob a devastação.
Tudo havia sido em vão até ali.
A fumaça cobria o horizonte, o sol estava branco, luz acinzentada, palidez de um verão amorfo.
Os caminhos percorridos até então não existiam mais.
Olhava onde havia antes uma estrada e só enxergava o fim.
Como se o passado se resumisse a passos largos deixados pelo chão.
Como se o futuro não tivesse explicação.
Os fins precisam de meios.
Não havia.
Quando não se há para onde voltar, o único caminho é o destino.
Incerto, acaso, ao léu.
“Terra à vista”, diriam os navegadores que nunca olham para trás.
Girou o corpo lentamente, na certeza de que tudo ao redor estivesse igual.
Destruição, ruína.
Cheiro de podre, de fumaça, de desesperança.
Fechou os olhos e completou a volta.
Sabia que de agora em diante sua história e tudo aquilo do que tinha certeza não significavam mais nada, além de palavras sem sentido, provas sem crime, testemunho sem fatos.
Sentiu a energia mortal da destruição.
Respirou fundo a acidez do ambiente.
Abriu os olhos lentamente.
O silêncio reinou em meio ao caos.
Nada se ouvia em quilômetros.
Uma lágrima desceu deixando um risco na poeira escura do seu rosto.
Havia uma trilha.
Estreita e cheia de curvas.
Mas havia uma trilha.
Deixou o passado em seu lugar, os caminhos largos destruídos pelo tempo.
Seguiu em frente apertando o corpo.
Abatido pela catástrofe, rumo ao desconhecido.
“Novos horizontes, se não for isso, o que será?”

Rafael Freitas



segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Sobre o Bom Combate e Cachorro Quente


Não é nenhuma novidade o que se passa.
O mundo está cheio de casos assim.
Mas a certeza em forma de papel timbrado assusta.
Não muda nada e muda tudo ao mesmo tempo.
O coração está apertado. A sensação de impotência é enorme.
Com exceção dos comandantes em seus gabinetes, ninguém entra numa guerra porque quer.
Dormir em trincheiras, ao relento.
O frio na alma que só o medo é capaz de causar.
Mas há uma diferença: na guerra os soldados salvam seus corpos a qualquer preço.
Esse combate que vivo agora não tem nada a ver com a minha vida. É outra vida. Uma vida nova, despretensiosa, que não escolheu nada disso.
É estranho pensar que você daria sua própria vida para salvar outra pessoa.
Talvez esse seja o aprendizado de que tanto se falam nas igrejas, nessas rodas egoístas de oração que se encerram com amigos secretos no fim do ano.
O Bom Combate.
Engolir a própria vaidade, a dor, as lágrimas, a raiva.
Abnegação.
Os problemas, as diferenças, a crueldade da vida sempre parecem coisas fáceis de serem resolvidas na casa dos vizinhos, no mundo das outras pessoas.
Já lutaram e ainda lutam o Bom Combate por mim.
Agora é minha vez.
A fraqueza que sinto é também um tapa na cara e a cobrança incessante de que devo ser forte, devo me despir de velhos pensamentos e navegar no mar desconhecido do amor que exige muito mais do que pode oferecer.
Vai dar tudo certo. Ou não.
Mas estaremos juntos.
Enquanto o sol nascer.
Enquanto o sono não vier.
Enquanto houver mais estrelas no céu do que falta de esperança na Terra.
Vamos resistir.
Afinal, temos amigos, irmãos, sorrisos e cachorro quente com suco de uva.

Rafael Freitas


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

Borboletas


Pousou uma borboleta preta na porta do guarda- roupas.
Dessas que as pintas parecem olhos que perseguem.
Asas enormes. Olhos enormes.
Olhos enormes para vê-la melhor, diria o lobo.
Talvez um mau presságio.
Sempre ouviu dizer que essas borboletas trazem em seu bater de asas coisas ruins.
Quase não dormiu essa noite.
Não sabia se por calor ou frio. Clima estranho.
Os olhos da borboleta não lhe saíam do pensamento.
Aqueles olhos gigantes.
Dessa vez ela não quis ficar.
Bailou no vento e se foi.
Como fazem as borboletas.
Debateu-se até conseguir fuga, escoamento.
Quem sabe amanhã volte.
Talvez fique.
Provavelmente esteja apenas se debatendo em busca de liberdade.
E queira voar por aí com os olhos abertos em suas asas.
Amanhece.

Rafael Freitas






segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Homens de Barro


Mais um crime cometido em nome do dinheiro
Assassinato de gente, de bicho, de rio
A insistência na desgraça refaz o seu projeto
De miséria, destruição, choro e ranger de dentes
Sejam bem vindos ao inferno
De lama, dor e homens de barro
Moldados pelo diabo da ganância humana
Por mais que eu ande pelo Vale das sombras da morte
Não temerei mal algum, pois Tu estás comigo
Que Deus não abandone a Tua própria criação
Mesmo estando arrependido por toda a eternidade
O rio não é mais doce, as lágrimas salgadas.

Rafael Freitas

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O amor


É difícil aceitar e entender
Que o amor não é nada daquilo que pensamos
Uma vida toda em busca do desconhecido
Que talvez sempre estivesse ali
No lugar de sempre
Na aceitação dos próprios erros
Na aceitação dos erros alheios
Na paz que só se encontra no outro
Quando já existe em si mesmo
O amor certamente não é aquilo que se espera
Não é algo correspondido
Pode estar somente em você
E se espalhar pelo mundo em sorrisos
Em versos, prosas, abraços, apoio, lágrimas
O amor está mais em duas latas de cerveja
Compartilhadas num jantar simples
Sentados na cama, disputando o ventilador
Do que numa rica ceia que estoura o cartão de crédito
O amor está na pele, naquele batom vermelho que lhe sorri
Nas bobagens que se compartilha
No desejo que se manifesta nos lugares mais impróprios
O amor está na presença
Mas, acima de tudo, na saudade.

Rafael Freitas