terça-feira, 30 de novembro de 2021

Lamaceiro

Era uma fila enorme na porta de um condomínio.

Condomínio de rico, em frente ao Portal, onde as pérolas se escondem.

Pérola negra, em meio ao lixo de um lamaceiro de entulhos.

Ainda era cedo, talvez antes das seis.

Dezenas esperavam o trabalho, enquanto lá dentro alguns ainda dormiam.

Em xeque a igualdade de um lar e comida.

Povo sem cheque.

Sem casa.

Sem trabalho.

Sem prato.

Sem nada.

E, acima de tudo:

Sem noção de que é excluído pelos que ainda podem dormir.

 

Rafael Freitas





terça-feira, 6 de julho de 2021

Seu lugar

Parecia o fim dos tempos.

O fim do mundo em poucas linhas:

ADEUS.

Parecia um mar aberto, sem encostas.

Sem praia, farol ou andorinhas.

Tudo parecia ser a mesma coisa.

As coisas eram como se não existissem.

DOR.

A dor do luto, da perda inevitável.

O peso do piano nas costas de uma formiga.

Parecia que o ar sufocava.

As pernas não suportavam o peso do corpo enfermo.

FIM.

Parecia um final irresoluto.

Ao mesmo tempo bem resolvido.

Um paradoxo frio e calculista.

Tudo parecia escuro e denso.

Tudo.

PARECIA.

Parecia tudo ser o que não era.

Não era.

Toda lágrima caída.

Toda palavra não dita.

Tudo que era para ser e não foi.

Estava à espera.

CAOS.

Toda confusão mental era um indício.

Um caminho feito a pés sem pele.

Um riso de sangue e abandono.

Era algo que não parecia.

ERA O AMOR PROCURANDO O SEU LUGAR.

 

                                            Rafael Freitas



 

domingo, 23 de maio de 2021

No dia em que enlouqueci

No dia em que enlouqueci os pássaros cantavam.

Nunca saberei responder se estavam felizes, mas cantavam.

Naquele dia, pela pouca memória que me resta, eu não estava atrasado.

Ao que me parece, as coisas acontecem na hora certa.

Como se fosse uma programação além vida. Como uma agenda estelar.

Sempre penso nessa programação com hora marcada.

Talvez isso me conduza à escravidão dos relógios digitais.

Sempre crio confusão com ponteiros quando estou com pressa.

O analógico nos abandona a cada dia. O fazer com as próprias mãos.

No dia em que enlouqueci eu pensava sobre isso: fazer com as próprias mãos.

Era um dia frio e nublado. Vi um tucano pulando nos galhos de uma farinha seca.

Tropecei num pedaço da calçada que se levantava com a força da raiz liberta.

Juro que pensei que não fosse enlouquecer.

Não naquele momento, não tão cedo.

Era cedo, tinha meia idade.

Era cedo, de manhã.

Era cedo, ainda aconteceriam muitas tragédias.

No dia em que enlouqueci eu já não assistia televisão.

Não lia mais autoajuda.

Não jogava na loteria esperando por Deus.

Era um dia cinza, frio.

Um belo dia para se enlouquecer.

Ao menos não errei a data.

No dia em que enlouqueci já não seguia calendários.

Já não seguia setas.

Já não seguia placas.

Talvez eu nem tenha percebido o instante exato em que enlouqueci.

Abandonar padrões de sanidade demanda tempo.

Abri a carteira, numa padaria de esquina, pedi um café.

Eu tinha dinheiro.

Isso não era comum.

No dia em que enlouqueci eu só tinha dinheiro.

Não tinha mais nada, nem ninguém.

O fungo negro secava pulmões.

A peste aérea invisível destruía tudo que tocava.

Um imbecil ria, ofendia, odiava.

Tudo acontecia.

No dia em que enlouqueci, tudo acontecia.

Talvez fosse um dia comum.

Sem amor, sem filhos, sem nação, sem rumo, sem placas, sem nada.

Ainda tinha uns trocados na carteira.

Entreguei ao homem estranho do semáforo.

Pobre homem que todos chamavam de louco.

Mal sabia ele que o louco era eu.

 

Rafael Freitas



 

 

 

sexta-feira, 12 de março de 2021

Hoje é meu aniversário

Eu não consigo entender essa injustiça.

Mais um ano, mais uma comemoração sob o medo e a incerteza.

Devia ser mais um dia comum, como há trinta e seis anos atrás.

Devia ser um choro de renascimento junto ao badalar do sino da igrejinha.

As lágrimas, hoje, são por vidas, sim.

Vidas perdidas. Descaso.

O acaso nos protege.

Não fosse isso, estaríamos todos mortos.

Oh, Santo Protetor das Armas de Fogo, incendeie com sua mais viril chama a consciência flamejante dos imbecis, déspotas, inconsequentes e sarristas filhos de tua pólvora.

Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, não temerei mal algum, pois Tu estás comigo.

Que minha mãe possa soprar suas velas sobre um bolo de confeitaria e não sobre o túmulo de seus filhos.

Resisto.

Sobrevivo.

Eu não consigo entender essa apatia.

Essas mãos atadas prontas para um nocaute ao poder insensível.

As flores não estão mortas, só murcharam um pouco em meio ao árido topor seco da desonra.

Coração na boca, respiração pausada, medo de inalar o ar que em outros tempos era o prana.

Mais um ano e tudo parece estacionado.

Ampulheta imóvel, areia em suspensão.

Não quero novos anos.

Anseio o que é meu por direito: a vida.

Quero brincar com meus erros e acertos, minhas correções e falhas sem medo de não ter outra chance.

Os dias, desde o buraco na história, são sempre iguais.

Mas hoje não.

Hoje é o meu aniversário.


Oh, Mãe Divina

Me ilumina

Por onde eu andar.


Rafael Freitas