segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Mosaico

Transformo meu coração em cacos
O prazer também habita a solidão
E as lágrimas ao permitirem-se existir
Permitem o despertar de novos sonhos
O brotar de novas flores na imensidão do quarto.

Transformo minha alma em pano roto
Despir-se é um ato de coragem
E a nudez possibilita ensaios, poses
Sensualidade à flor da pele, arrepios
A volta da pureza em um corpo vão.

Transformo minha paixão em alegoria
Enfeites nos permitem iluminar os olhos
Ver um mundo novo além da janela aberta
Colorir a avenida com vermelho sangue
E sangrar aos risos e chorar em festa.

Transformo meu coração em cacos
Pedaços de espelho que refletem a mim mesmo
Pedaços de vida ainda não vivida
Pedaços do que poderia ter sido e não foi
Um mosaico que teima em enfeitar meu peito.
 
                                                                       Rafael Freitas
 

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Você sempre está

Sentir-me só, como eu queria!
Sentir saudade, lembrar seu cheiro
Ver seus cabelos pelo chão
E poder imaginar que estiveram em você.
Como eu queria ver seus brincos
Esquecidos na cabeceira, desolados
Encontrar rimel e batom perdidos
Junto aos sabonetes e remédios.
Ver pratos sujos sobre a pia
E lembrar do lanche, do filme
Da bebida e das noites mal dormidas
Que as festas e o calor nos trazem.
Como eu queria falar a seu respeito
Como eu queria tê-la em pensamentos
Como eu queria querer sua presença
Mas você nunca é. Sempre está.


                                           Rafael Freitas 


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Meu sol nascente

Para Théo, meu pequeno Ramone

Não quero ver em seus olhos
A tristeza fria dos orientais
O sol nascente não acaba mais
Por trás dos morros e dos cafezais
Não quero passos curtos
Em nossas despedidas
Quero fazer parte dessa curta vida
Em nosso roteiro passagem de ida
Que nossos pijamas sejam sempre iguais
E nossos abraços sejam demorados
Nossos corações sempre apaixonados
E nossos caminhos sempre lado a lado
Que o meu sorriso seja pelo seu
E que minhas lágrimas sejam sem razão
E se houver motivo seja emoção
Por sobrar amor nesse meu coração
Não, não, não quero mais dizer adeus
Em nenhum momento quero ir embora
Quero seu cheiro ontem, hoje, agora
E sua presença sempre com demora
O que sei fazer é meu amor em texto
O seu estar é sempre alegria
Seja feliz meu anjo noite e dia
Que nossa história faça-se em poesia

                                                   Rafael Freitas

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A Pequena Fábrica de Monstros


O sofrimento estampado em seu rosto denunciava o quanto a presença daqueles braços se fazia necessária. Não queria nada além de um abraço, um minuto de atenção. A incompreensão cria monstros assombrosos dentro das pessoas que em pouco tempo se exteriorizam, manipulam, consomem.
            A súplica por carinho foi respondida com as costas. Costas não respondem nem ouvem nem consolam.
            As lágrimas não perdoam.
            Seguiu metodicamente seu livro familiar de criação de filhos e teve a plena certeza de que pessoas tem manual de instruções, de que a criação que recebera foi a melhor que se pode esperar e que era a melhor a aplicar em seus filhos.
            Hora do jantar, hora do café, hora de dormir.
            Carinho excessivo cria seres humanos vulneráveis.       Nada de abraços sem hora marcada.
            Amar dá trabalho. Cuidar dá trabalho. Preocupar-se dá trabalho.
            Trabalhar era tudo que não queria.
            Casou-se com um bem sucedido empresário para não ter que se preocupar com mais nada. Nunca quis filhos, mas a sociedade sempre cobra família perfeita de seres imperfeitos. Transou sem vontade nem emoção, fez o que foi necessário para agradar o marido, a sogra, os maçons, a puta que o pariu.
            Só não agradou a si mesma.
            Mas era necessário. Todos podiam mais que ela, todos eram mais felizes, todos ao menos eram. Ela não.
            Nunca foi nada. Nem boa filha, nem boa aluna, nem boa atleta, nem artista, nem cozinheira, faxineira, nada.
            Nada.
            Resolveu reproduzir sua inexistência casando-se com um ser tão sem vida quanto. Só não contava com os filhos.
            Nunca quis esse desgaste. Esse peso eterno e enfadonho de uma história sem fim.
            Mas...
            Já era acostumada a viver entre conjunções. Filhos eram só mais uma.
            Usou o manual. Os resultados não foram os melhores, mas não sabia outra forma. As fórmulas haviam se esgotado.
            Tentou compra-los com chocolates, passeios monitorados, melhores escolas e carros de luxo.          
            O tempo sempre passa; até mesmo para quem não existe.
            Um dia viu-se de muletas, viúva e decrépita.
            Podia ainda contar com os filhos doutores, criados com técnicas infalíveis.     
            Tornaram-se pessoas sem coração, emoção, quase tão inexistentes quanto a progenitora, mas com dinheiro e colocação social, o que era ainda mais importante.
            Invejados filhos!
            As festas familiares eram constantes e tinha a plena certeza de que os vizinhos se roíam em suas vidas infelizes e monótonas.
            Sentia-se alguém.
            Depois de tantas décadas, ser alguém exige método.
            Na despedida dos filhos, ao fim de um almoço colossal no dia das mães, sem motivos aparentes caiu ao portão.
            A idade atravanca a mobilidade até dos maiores atletas.
            Ergueu os olhos e pôde vê-los. As duas maiores experiências científico-sociais de sua vida a observavam calados e sem nenhuma expressão.
            Sua cabeça doía muito e já começava a sentir frio.      
            O sofrimento estampado em seu rosto denunciava o quanto a presença daqueles braços se fazia necessária. Não queria nada além de um abraço, um minuto de atenção, o socorro necessário. A incompreensão cria monstros assombrosos dentro das pessoas que em pouco tempo se exteriorizam, manipulam, consomem.
            Os monstros já estavam à solta.

                                                                                 Rafael Freitas


segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Amanhã é 23


Amanhã é 23
Primavera em setembro
Flores saem de seus olhos
E se espalham pelo mundo
Já se vão alguns dias
De um agosto que deixou
Cinco semanas infinitas
31 dias de espera
A lua azul ficou pra trás
Num céu negro em tempo seco
Numa nuvem de poeira
De fumaça, de espirros
A chuva certamente vai chegar
E molhar a terra, fazer nascer
Umedecer olhos e corações
Lavar a alma e os telhados
E nos encontraremos no olhar
Em meio aos lírios amarelos
Nossos beijos vermelhos de batom
Darão mais cor aos lábios e às flores

Seremos eternamente felizes
Até o próximo final de outono.

                                                Rafael Freitas

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Feliz da vida


A vida lhe dá amores
Você os trai sem pena
A vida lhe dá sorte
Você acorda ao meio dia
A vida lhe dá família
Você freqüenta bares
A vida lhe dá trabalho
Você levanta de ressaca
A vida lhe dá as cores
Você adora o Batman
A vida lhe dá Mozart
Você prefere Ozzy Osbourne
Então, não mais que de repente
A vida desiste de você.

A vida lhe dá solidão
E você nem se importa
A vida lhe dá azar
E você já o esperava
A vida leva seus pais
E pra você essa é a ordem
A vida lhe tira o trabalho
E você curte a preguiça
A vida lhe dá daltonismo
E você ainda ama o Batman
A vida lhe diminui a audição
Você sabe que a culpa é do Ozzy
Então, sem surpresas nem sustos
Você se sente feliz.

(Feliz da vida!)

                                                    Rafael Freitas 

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Outro outono


Eu vejo as folhas despencando das árvores
E sinto a tristeza boa dos fins de outono.
Aquela solidão querida e necessária
Para o despertar de novos dias, olhar novos caminhos.
Não raro me deparo a examinar as flores
Gosto muito dos ipês, dos lírios e dos manacás.
Não vejo a beleza existente no concreto.
Essa beleza certamente existe, mas não a vejo.
Passeio pelos dias esperando a chance de descansar
Esperando a desforra dos horários herméticos,
Dos salários curtos, dos dias sem a luz do sol.
As cortinais azul escuro não tem beleza,
Somente o vento que as faz subir
E derrubar meus óculos, meu copo d’água, meus papéis.
Papéis inúteis para a vida. Papéis simplesmente inúteis.
Nesse mundo de burocracia e voto obrigatório
Onde habita a liberdade do olhar, do pensar?
Pensamos a liberdade como inerente ao ser
Mas não. Ela se desprende a cada passo nosso
Em direção aos padrões das propagandas de margarina.
Não precisamos de carros novos, aviões de prêmios,
Nada disso. Ou daquilo. Ou isso. Ou aquilo.
Ando tão perdido em devaneios e quimeras
Que acordo dentro do meu próprio sonho.
As folhas outonais são livres. Caem e voam ao vento.
Libertam-se levemente do cárcere dos galhos.
Mesmo assim estão presas às estações.

                                                                      Rafael Freitas


sexta-feira, 3 de agosto de 2012

Novamente Eu


O caminhar eterno em cima do muro
A indecisão infinita por qual lado
A indefinição constante, atemporal
O paradoxo, o imperfeito, o arredio
O nada a declarar e a fala incessante
O olhar atento e a desatenção
O notívago das manhãs de sol
A claridade escondida pela tempestade
O fim, o rompimento, a secessão.
Arrependimentos felizes.
Certezas inúteis.
O recomeço.
Sempre o recomeço.
Tudo isso me define bem.

                                                              Rafael Freitas


terça-feira, 31 de julho de 2012

Sobre o fim e outras coisas


Sua presença indesejada em meu corpo
Desde o nascimento até agora
Sua sombra na penumbra do meu quarto
Nas noites tristes de insônia
Sua cor estampada em meus olhos
E na voz triste do meu pai
Sua felicidade no motorista imprudente
Seu prazer em minhas esbórnias relutantes
Sem sentido, em busca de não sei
Seu tesão nessa tosse incessante, ansiosa
Em meus maços de cigarro já vazios
Em meus copos de whisky pelo meio
Em minha falta de respeito pela lei

Em meu temor idiota pelo nada.
Ser um nada, sem um nada, ver a nada.

Dessa vez pode não ter jeito
Nem ser fácil como meu dia natal
Pode ser que sua espreita gere frutos
E que sacie sua fome afinal
E minha história não será como eu queria
Não verei os lindos olhos mais maduros
Espero ao menos ser saudade em algum peito
Como fui plano em várias vidas e futuros.

O fim nem sempre é triste:
Pode ser a apoteose do espetáculo.

                                                          Rafael Freitas

terça-feira, 17 de julho de 2012

Anos sóbrios


Então me diz agora
O que fez nesses anos sóbrios?
Nesses cinquenta gloriosos?
Qual o legado que deixou?
Olhe nos meus olhos
Você já tem as respostas?
Pelo menos sabe as perguntas?
Ao menos sabe a que veio?
Sem gagueira ou vacilo
Foi feliz por quantas horas?
Fez o que quis em quantos dias?
Amou alguém alguma noite?
Não mude o assunto
O que você fez durante esse tempo?
Entregou-se por vontade?
Por obrigação? Por superioridade?
Por que não responde?
Por que se nega?
Por que insulta?
Por que tanto escudo e armadura?
Por que esse campo minado?
A culpa não é de ninguém.
A guerra acabou.
Voltemos às ruas assistir à partida dos tanques.
Sintamos no peito o silenciar das bombas.
Fomos apenas peças no xadrez dos grandes.
Fomos apenas cifras no mercado externo.
Nada como a chuva para acalmar o coração.

                                                    Rafael Freitas


segunda-feira, 16 de julho de 2012

Seu olhar


Seu olhar me entristece
Sinto em meus ossos moles
O frio dessas pupilas claras
O vento forte dessa alma vaga
O medo desse seu sorriso vão
Sua voz doce me amargura
Sinto em meu peito oco
O vibrar de toda essa sonoridade
O estilhaçar de sua tempestade
O esvaziar tranquilo de seus pulmões
Sua presença me incomoda
Sinto nesse meu pequeno mundo
Seu corpo grande me reduzindo o espaço
Seu respirar de verdadeiro inchaço
Sua aura negra sempre em expansão
Suas asas me encobrem o sol
Sinto mofar a minha pele seca
Por esse clima denso de floresta
Por na tristeza sempre querer festa
Por eu querer que vá embora ou não!

                                                          Rafael Freitas



terça-feira, 3 de julho de 2012

Mesmo sem querer

Você podia enxergar seus erros
Seus deslizes, seus desvios
Seu egoísmo ignorante
Seus vícios que destroem.
Enxergar sua sina em ser sozinho
Sua mania de limpeza, de esperteza
Suas falhas de caráter, de conduta
Sua paixão por pinga, pó e puta.
Olhar no espelho e ver nos olhos
A vermelhidão da insônia
A barba que lhe soma mais idade
O cigarro amarelo nos seus dentes
O seu ar superior de crueldade.
Ver sua alma esgoelante refletida
Na água da privada em que vomita
E entender que o mundo espera de você
A diferença taciturna dos pedestres
Especial em ser comum é o que deve.
Sim, você devia entender os outros
Colocar-se no lugar alheio
Sentir a dor que provoca prantos
Esperneio e choro baixo pelos cantos.
Você podia se enxergar em mim
Não me deixar o esperando horas
Não desligar seu telefone à noite
Ver-se em meu corpo ao despertar da aurora.
Você devia olhar bem no fundo
E enxergar o que seu peito sente
Ver se me encaixa em seus planos sujos
É o que quero mesmo sem querer.

                                                             Rafael Freitas

quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Manual da Gestante

     Haviam se casado há pouco tempo, mas a rotina e a ferrugem já contaminavam o dia-a-dia. Ele não saía da frente da televisão, enquanto ela se apegava nas maiores inutilidades de revistas sobre moda e vida de gente famosa. Tudo acontecia como acontece com a maioria dos casais, até que veio a notícia da gravidez. Ele, além de não gostar de crianças, sabia muito bem o trabalho que elas davam: tinha três sobrinhos. Não queria ser pai, não queria responsabilidades. Queria uma TV a cabo.
            Ela? Ela adorou a idéia, apesar dos enjôos e das quedas de pressão arterial. Sempre quis ser mãe, mas sabia de suas limitações como esposa, dona de casa, advogada e motorista. Sua mãe adorou a notícia: iria ser vovó pela primeira vez! Presenteou a filha com um guia prático de gestação: O Manual da Gestante. Tudo estava ali: as mudanças hormonais, os distúrbios psicológicos, o que comprar o que comer e até quais seriam as reações do marido durante a gravidez.
            Ele continuou deitado no sofá, e a única certeza que tinha era a de que há poucos meses sua tranqüilidade teria um fim. Ela lhe mostrou o manual e disse que aquela indiferença era esperada: “... Segundo pesquisas, os maridos só aceitam a gravidez quando a barriga já está grande. É a dificuldade do homem em abstrair.”.
            Sua despreocupação era verdadeira, mas seu espírito cristão não permitia que dissesse a verdade: acordava toda vez que a mulher vomitava aos urros, acompanhou o pré-natal e até jantou algumas vezes na casa da sogra. Afinal, o manual dizia que quando nasce uma criança é necessário que nasça também um pai, uma mãe, avós... uma família tipicamente burguesa e nuclear.
            O casal comprou roupas, fraldas, produtos infantis e brinquedos. O sexo já não fazia parte daquela relação que não se baseava mais em homem e mulher: tornaram-se pai e mãe.
            A única diversão do marido eram algumas garrafas de cerveja durante as refeições e, quando conseguia ficar sozinho, via pornografia na internet com a mão dentro das calças. Numa dessas madrugadas clandestinas foi apanhado de surpresa. Não deu tempo de tirar a mão e mudar de tela. A esposa caiu em prantos sentindo-se trocada por uma vadia que talvez nem existisse de verdade. Correu até o manual e desesperadamente procurou a resposta para seu sofrimento. E ela estava lá, na página quarenta e sete: “... Procure entender a necessidade sexual de seu marido. Os homens são menos resistentes às privações da gravidez, por isso tendem à masturbação e à procura de material pornográfico.” Conseguiu o conforto que procurava e mostrou a ele sua superioridade: trancou-se no quarto e chorou no escuro daquela madrugada interminável.
            Depois do acontecido ele tentou uma aproximação estratégica levando a mulher para passear de mãos dadas, tomar sorvete de baunilha e comer algodão doce na praça. Coisas típicas de um casal apaixonado na década de trinta. Era uma pena ser o primeiro decênio do século XXI.
            Ela era insaciável: chorava toda noite sem motivos aparentes, não suportava ver o marido sorrindo ou relaxado, sempre queria atenção e toda atenção não lhe servia. Estava lá, na página setenta e nove: “... Passado alguns meses, a sensibilidade da mulher aumentará em grandes proporções. Isso mostra porque somente elas podem gerar uma vida: os homens são insensíveis.”.
            O resultado de toda essa sensibilidade foi o aumento dos choros convulsivos e um esquecimento da figura do marido. Para ele, esse esquecimento era ótimo: não tinha perturbações a todo momento e podia se distrair com os brinquedos do filho. Mas brincar com os brinquedos do filho era um retrocesso à infância, coisa seríssima, que merecia atenção especial e tratamento psicológico. Estava escrito na página oitenta e quatro: “... Seres humanos do sexo masculino, segundo pesquisas científicas, ao se deparar com situações extremas, tendem a retroceder à fase infantil, devido à sua baixa capacidade cerebral. Este é um quadro que merece certa preocupação, pois, apesar da grande maioria ser apenas uma forma de chamar a atenção pelo comportamento imbecil, pode se tornar patologia específica, tratável apenas por medicação.” Todas os olhares se voltaram para ele, que nem queria tanta exposição, e decidiu voltar ao sofá para evitar transtornos.
            A presença da sogra em sua vida havia se tornado freqüente e irritante, e ela fazia questão de apresentar sua fonte teórica para tanta intromissão na vida do casal. Capítulo nove, página cento e vinte cinco: “A presença da futura vovó é muito importante no período de gestação, pois somente uma mulher que já passou por essa fase pode entender o que a outra sente e orientar, com base no Manual da Gestante, a melhor forma de conduta desde os primeiros meses até o parto.”.
            Ele, com todo seu exercício de paciência, agüentou firme cada segundo, cada repreensão, cada irritação e, acima de tudo, cada frase do manual que, segundo a sogra e a esposa, era o mais completo do mercado e não estava aberto a discordâncias.
            Vagarosamente, passaram-se os nove meses como se fossem nove séculos, e ele aguardava ansiosamente a chegada do filho, mais pelo fato de que tudo voltaria ao normal do que pela felicidade de ser pai. O manual dizia que era extremamente importante a presença do pai durante o momento do parto e para não contrariar a esposa ele até filmou e fotografou tudo, mesmo sentindo náuseas e tontura frente àquele procedimento açougueiro chamado cesárea.
            Foi o primeiro após os médicos a segurar a criança e sentiu-se emocionado ao contemplar o resultado de todo aquele processo doloroso que se encontrava agora em seus braços. Tanta fragilidade resultava de um duelo de titãs. Isso era impressionante.
            O manual dizia ser a volta pra casa o momento mais emocionante e decisivo na vida do casal. Não pôde sentir esta emoção, agora não existia mais casal. A sogra foi morar de vez com a filha.
            Engoliu. Suportou. Silenciou.
            Pagou contas, fez compras de supermercado, comprou absorvente e fralda Pampers na farmácia. Era como se não existisse mais. Sua esperança de voltar à vida simples de sofá e televisão acabara com a frase que finalizava o manual: “... Depois de algum tempo a vida voltará a ter normalidade, mas nunca mais será como antes.”.
            Arrumou as malas e foi dizer adeus à esposa, que apesar de tudo, foi um dia uma paixão. Pensaram em construir uma vida juntos, sem saber que construir uma vida é algo cansativo e egoísta. Tentaram. Toda tentativa tem chance de erro. Erraram. O preço de sua liberdade era a pensão alimentícia, que pagaria sem rodeios, não sem reclamações. Esperava ser compreendido em sua cerimônia de adeus, mas foi humilhado pelas duas mulheres. O manual alertava sobre a covardia de alguns homens e, segundo elas, ele não passava de um covarde.
            Xingaram. Humilharam. Agrediram.
            Ele controlou o máximo que pôde a expressão de seu descontentamento, até que ultrapassaram seu limite. Trancou a porta do quarto e cegamente acabou com a vida daquelas que atrapalhavam a sua. Primeiro a sogra, que enforcou com o lençol. Depois a mulher, que matou a golpes de manual. Trezentas e quarenta e duas páginas com capa dura: não havia arma melhor.
            Ao final de tudo, procurou entre as folhas amassadas e ensangüentadas o que o livro previa nessa situação. Não encontrou nada. 
                                                                             
                                                                                              Rafael Freitas

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Cachorro cego


Dentro de mim vive um cachorro cego
Que morde a esmo
E uiva a lua ao meio dia

Um cão que deseja amor platônico
Desses que não se sabe nem o nome
Nem endereço ou profissão

Pois quando se sabe o nome
Logo se descobre o que não se quer saber
Animalescas incompatibilidades

Dentro de mim vive um animal
Que escreve à pata suja
Poemas infindáveis de amor eterno

E no fundo sabe, sem duvidar
Que poemas de amor são como água:
Sem cor, cheiro ou paladar

Apenas carregam em si a vida
Que nunca se sabe se quem escreve
Realmente vive ou sente.

                                                                           Rafael Freitas

terça-feira, 12 de junho de 2012

O amor também morre de fome

Pendurei meu coração no varal
Exposto ao gosto do tempo
Ao pó, à fumaça, ao vento
Aos olhares, anseios, lamentos
Deixei meu coração bem à mostra
Para que não restassem mais dúvidas
Nem preciso fosse intervenção cirúrgica
Pra se ver em meu peito o amor
Sentimento tão nobre, tão belo
De sabor agridoce, suculento
Necessário ao mais vil purulento
Que vegeta só em seu desalento
Essa dependência estranha
Que em meu coração ainda existe
Entre a dor e o amor que resiste
Não me faz encontrar solução
Cubro o órgão vital com sal grosso
Carne seca, tenra e sem osso
E em farofa saciar minha amada
Com pimenta na hora do almoço
Sei que vai lamber todo prato
Prato estranho e ainda sem nome
Feito gente que sabe e que sente
O amor também morre de fome.

                                          Rafael Freitas

terça-feira, 5 de junho de 2012

A segunda tempestade

Para Solange.


Eu quero a solidão ordinária dos dias turbulentos
Regados à chuva e barulho de locomotivas
Trilhados pela algazarra da tempestade em telhas de zinco
Pelas pessoas falando alto sob os toldos das farmácias
Com as barras das calças molhadas e enlameadas
Com os cabelos úmidos e os óculos embaçados
Com a fumaça dos cigarros seguindo caminho contrário à rua
Com as velhas gordas de guarda-chuva que trafegam encharcadas
Pelas ruas de trânsito engarrafado e semáforos quebrados
Pela vida de querer carro e entrar no mesmo esquema
Deixar pra trás os assentos das monaretas com sacolas plásticas
E as costas das camisetas cheias de respingos de barro sujo
E o cheiro de urina e fezes de cachorros molhados e gente também
Eu quero a solidão destes dias em que ninguém se fala
Todos se odeiam ao lembrar das roupas que estão nos varais
E da casa que entra água por baixo da porta da sala e o tapete é novo
E ninguém tem tempo e todo mundo tem pressa e nada a dizer
Os acenos são quase imperceptíveis e os olhares vazios
Os dias de calor e sol e céu sem nuvens são mais dialogáveis
Mas, mesmo assim, eu quero a solidão destes dias sem sol
Hoje eu quero ser sozinho, sem assunto e em síntese conciso
Os dias cinzas não mascaram a incolor alma humana
Que em seu virar de páginas carrega em si a tempestade.

                                                                                         Rafael Freitas

sexta-feira, 1 de junho de 2012

Terceira Carta


“Quando a chuva congela, vira granizo!”.
E, mais uma vez, meus olhos encheram-se d’água. Pura felicidade ao vê-lo feliz.
Seus olhos de descobrimento e de posse do assunto me dominam a cada frase, a cada respiração.
Agora você é super-herói, depois uma estátua, depois um piloto de fórmula 1.
No que depender desse pobre espectador, você pode ser o que quiser!
            Não me canso de lhe abraçar até meu olhar formar maré e o corpo estremecer. Se a nobreza do amor existe, ela está no seu dormir no banco de trás do carro, no esconder-se sob makurás, na explicação das Babuchas de Abu Kasem, no suco em pó sabor morango bebido aos goles, na bala que o papai trouxe da “igreja”, nos passos dos Ramones na hora do almoço, na teimosia na hora do banho e de escovar os dentes.
Deus se aproximou de mim em seu primeiro choro.
A cada dia sou um novo homem que conta histórias suas para todos e não se cansa de pensar em uma forma de lhe agradar e apresentar sempre um mundo cheio de surpresas.
Eu não sou um superpai. Sou humano. Cheio de imperfeições e amor incondicional.
Você sempre será meu super-herói e minha kryptonita.
Depois pode ser estátua, piloto de fórmula 1...

                                                                              Rafael Freitas


quinta-feira, 31 de maio de 2012

Sonho Bom


De tanto sonhar acordado, seus olhos ressecaram.
Ardiam e apresentavam a vermelhidão tóxica das noites mal dormidas e dos amores acabados.
Sentia dor mas não se movia.
Não sabia se o sonho tinha terminado ou se os finais felizes sempre carregam consigo a dor.
Já não enxergava o que tanto olhou, não distinguia cores e tons e luz.
Somente a seca.
Como o leito dos rios sem chuva que racham com o sol de dezembro.
Como a pele exposta ao frio das manhãs de um árido outono.
Nenhuma lágrima.
Não conseguia chorar em meio ao sonho sem sono diário.
Já não lembrava o que o fez sonhar, mas sabia que era bom.
Melhor que o despertar vazio das manhãs de segunda-feira.
Melhor que o descansar das madrugadas alucinógenas dos feriados.
Sentia o cheiro das flores que não sabia se existiam de fato.
Depois de um bom tempo a dor já não incomodava.
Como a toalha molhada sobre a cama após anos de casamento.
Como o mastigar à mostra do sobrinho obrigatório.
Conseguiu com muito esforço movimentar os dedos das mãos e dos pés.
Levantou-se vagarosamente e sentiu a brisa em seus cabelos.
O sonho tinha sido realidade por alguns segundos.
Agora tudo estava acabado.
As lágrimas vieram com força, como se rompessem o pâncreas, o fígado, os pulmões, até estourarem na face em prantos convulsivos.
Realmente era o fim.
A seca acabou.

                                                                           Rafael Freitas

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Referências


Se alguém quer matar-me de amor
Que seja na última flor do Lácio
De todas, a inculta e bela
Que fala mais por mim
Do que eu consigo falar por ela

Quer então me matar de amor?
Não jogue as cartas na rua
Peça você sua dose
Faça o melhor dos proveitos
Não tenha no peito overdose

Alguém ainda quer me matar?
Com certeza não mais de amor
Vele minhas madrugadas
Espere-me de portas abertas
Para me curar das noitadas

Quer então matar seu amor?
Não ouça conselhos meus
Faça o que eu disse ao contrário
Corra atrás da sua vida
Eis pra você o otário!

Agora sentindo seu morto amor
Não espere telefonemas
Muito menos minha voz carregada
Devolva o meu livro velho
Eu ainda vou pra Pasárgada!

                                                           Rafael Freitas





sexta-feira, 11 de maio de 2012

Cartolagem


Gol!
De virada é mais gostoso!
Nossa! Esse time é demais!
Isso era o que se ouvia naqueles dias turvos.
Paulista, Brasileiro, Libertadores, Mundial, a puta que o pariu!
Fogos, estampidos.
Em seu disfarce, em meio a tanta idiotice, não se ouviam os tiros.
Derrubou uma a uma.
Rasgava os uniformes, beijava os brasões e contorcia-se em êxtase profundo.
Ninguém viu, ouviu. Só sentiram falta.
Briga de torcida – pensaram.
Proibiram as “organizadas” de assistirem aos jogos.
Foi para segunda divisão, lá a fiscalização era menor.
Pena que os fogos também.
Optou pelo estrangulamento.
As líderes de torcida eram mais feias, mas isso não importava.
Vagabundas. Marias chuteira.
Beijou brasões e brasões sem nunca ter torcido por time algum.
Nem tinha motivos para isso.
Em sua vida imbecil nunca foi fiel, nem independente. Assemelhava-se mais aos urubus e aos porcos.
Chafurdava aqueles corpos frios como lavagem, mordia-lhes as orelhas como se dilacera a podridão.
Tudo sem pagar entrada.
Sabia verdadeiramente o que era cartolagem.

                                                                                                   Rafael Freitas

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Quarta en cinza

Subtrai-te en tus momentos mas funébres
O menímo pó de brilho que puderes
E num serás tu em tu festa de coveiros
Ladeado por coroas de defuntos
Syn será una alma per intero
Torvalhado pelas luzes des djuntos.

                                                                 Rafael Freitas

* vide TORVAL e ADJUNTO

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Outono


Tenho certeza de que estava ali, encostado na placa de trânsito, olhando a rua e as pessoas e tentando acender um cigarro contra o vento.
Fósforos são desleais companheiros em situações como essa, mas era outono e eu sabia que o período era de ventos.
As crianças brincavam de amarelinha, com o desenho dos quadrados e números feitos com cacos de tijolos. Dizem que isso já acabou. Naquela rua não.
O asfalto tinha marcas de cimento, feitas por reformas inacabáveis em casas de quem não tem dinheiro para morar onde e como queria.
E os fósforos apagavam um a um. Só estalo e cheiro e mais nada. O cigarro na boca. O ombro na placa. Os olhos na rua e nas pessoas.
O vento estava maravilhoso como sempre.
Não conheço furacões nem tornados, por isso sempre acho o vento bem vindo. Uma pena não permitir a fumaça dos cigarros.
Eu estava ali. Naquela tarde com cheiro de infância, de coisas que deixamos por fazer em determinado momento da vida.
À direita existia um ferro velho, atrás uma praça, em frente um velho bar que vivia cheio de bêbados.
A sombra das árvores e o silêncio das pessoas nas ruas aumentavam a sensação de que aquele exato momento já tinha acontecido há tempos atrás.
Senti um calafrio, um sopro no estômago.
Tenho certeza de que estava ali, encostado na placa de trânsito, olhando a rua e as pessoas, mas o vento não permitiu que acendesse meu cigarro.
Crianças não devem fumar.
Até hoje me vejo ali no mesmo lugar. Sinto o cheiro da cachaça no bar em frente. Sinto o cheiro da pólvora dos fósforos riscados em vão.
Não sei quando me perdi.

                                                                                        Rafael Freitas

quinta-feira, 29 de março de 2012

Mais nada

Lua cheia
Pode ser que eu perca
A visão do mundo
Por muros
Altos e concretos
Altos.
Não se vê
Mais nada
Nem o horizonte
Que até então
Era público.
O privado se contenta
Em não ser alheio
Nem meu
Nem seu.
Mas a lua
A lua persiste
Em sua magnitude
Luz e infinidade.
Somente eu
E você
Possuidor de muros
E grades
E alarmes.
E vigias
E guardas
E cães
E amigos bandidos
E coisas a mais
Não mais a veremos
Nem seremos lobisomens
Nem botos
Nem eclipses
Nem breu.
Nada.
Nada.
E mais
Nada.

                                                                             Rafael Freitas

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

O dono do céu

Acordei assustado.
Ao lado uma poça de vômito enfeitava meu travesseiro.
Preciso parar de beber.
Não me lembro muita coisa da noite anterior. Na verdade, das últimas semanas.
Sei que fui traído e não consigo perdoar.
O perdão não faz parte desse vocabulário curto que conheço.
Sou uma reprodução do que aprendi a ser.
Desde o útero a traição já faz parte da minha vida e a falta de perdão também.
Não sei se fui esperado. Acho que não.
Fui arrancado antes do tempo das entranhas hospedeiras. Fui afogado em mágoa e líquido.
Acabei, sem motivos aparentes, sobrevivendo.
Fizeram tantas promessas em meu nome que até hoje não consigo viver em paz.
Apanhei pra poder chorar. Recém e bastante tempo pós-nascido.
De novo sobrevivi.
Fui traído por minhas ilusões de criança que acreditava que aquilo era o melhor pra mim.
Não era.
Não existe o melhor.
Existe o possível.
Não tinha outra escolha.
E a traição permanente ainda assombra. Um Édipo que habita a escuridão de cada um.
Não sou visto com bons olhos.
Já pensei até em matar.
Mas o corpo só não basta.
Minha vingança será maior.
Vou destruir a essência. Assassinar almas.
Preciso de terno, bíblia e púlpito.
Já rezei muito em vão. Agora minhas orações terão motivo.
Dinheiro, fama e adoração.
Adoração a mim.
Façam suas oferendas ou de vocês será o fogo eterno!
E não se esqueçam de perdoar, amar, vigiar...
Sou o dono do céu.

                                                                             Rafael Freitas

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O que sobrou do amor

Eu só podia olhar pra cima.
Os olhos cheios de sangue e lágrimas e pó também.
O que sobrou do amor.
Seu pé em minha garganta e as gotículas de saliva que voavam de seu vocabulário imundo direto pro meu rosto.
Depois de me surrar, humilhar, cuspir e escarrar, me deixa uma carta de amor.
De novo amor.
“Sua insensibilidade lhe causou isso tudo. Seu sangue e sua dor nem se comparam com o que passo todos os dias ao pensar em você”.
Eu só fiquei em casa.
Você ao portão, ao telefone, à espera.
À espera, à espreita, às escuras!
Eu? Em casa.
Certamente não correspondi.
Nunca soube o que queria e não sei o que quer.
Ama e odeia com a facilidade de quem tira os óculos pra não ver o indesejado.
Depois que o sangue parar de jorrar e meus olhos voltarem a ver, espero que não reapareça.
Cartas de amor não são analgésicos.
A dor física é latente.
Não espere que eu sofra por amor.
Ainda me sobram dores.

                                                                               Rafael Freitas