segunda-feira, 20 de abril de 2020

Vigésimo primeiro dia


Era dia 21.
Era feriado.
Já não fazia diferença aquela homenagem prestada a um herói nacional em forma de dia de descanso.    
Quase tudo, em vinte e um dias, não fazia mais sentido.
Os carros eram desnecessários sem poder trafegar, entupindo semáforos, também desnecessários.
Era estranho como as coisas sem valor de outrora ganharam novos significados.
Encontrou alguns discos de vinil empoeirados no canto do quarto de despejo.
Todos talvez se sentissem como aqueles discos de vinil: empoeirados pelos cantos dos quartos de despejo.
Tirou o pó das capas, reconectou os cabos do velho NATIONAL, que já estava embalado para ir para o lixo.
Encontrou várias raridades, que em outro momento causariam inveja em qualquer colecionador. Com tempo de sobra, resolveu ouvir a pouca herança recebida do avô.
Chiado de agulhas. A importância de se prestar atenção ao que ouve, virar o disco.
Algumas coisas sempre serão fora de moda, mesmo em seu próprio tempo.
Entre alguns risos discretos e algumas lágrimas nos olhos teve um despertar: tudo fazia sentido, tudo já foi dito em algum momento.
Há dez mil anos atrás já se previa esse dia em que a Terra parou.
Sim! Conexão direta, universal.
Apressadamente, num ímpeto de descoberta, abriu a velha estante e reencontrou os velhos Orwell, Huxley, Kundera e Sartre.
Uma náusea se fez presente. Vertigem. O mundo se movia como a beira de um abismo. Precisava de algum remédio. Uma dose de endorfina, prazer, desconexão.
Era dia 21, um revolucionário quis a liberdade.
O ir e vir desorientado, incessante e sem motivo dos dias normais ganhava direção e sentido até mesmo nas prisões regadas à cerveja do período domiciliar.
Tudo se conectava, os velhos profetas injustiçados tinham razão.
Apocalipse now.
O Universo se movia em seus pensamentos como uma eterna espiral.
Tudo era uma coisa só.                            
As palavras, repetidas incansavelmente, transmutavam-se em mantras, orações, a língua dos anjos.
A loucura mostrava sua cara, seus tentáculos, suas garras.
Por que agora?
Tudo sempre esteve ali, mas nunca foi notado.
O essencial é invisível aos olhos e quando pode ser visto fingimos não enxergar.
Seu grito rompeu o silêncio da rua deserta.
Silêncio.
Ainda havia uma esperança.
Haviam muitas esperanças.
Reescrever a história, fugir das previsões, o despertar do mundo.
Todos eram um.
Havia muito a se escrever, a se dizer, a se ouvir.
A destruição do que era precioso foi só o começo de um novo tempo.
R.E.C.O.M.E.Ç.O.
Havia enlouquecido?
Não.
Louco era antes.

                                                                                  Rafael Freitas


2 comentários:

  1. Resta o lado B do disco? Adorei!

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  2. Ouvimos os discos. Todinhos. Assim como tudo, até o fim. Até no fim da rua também. As vezes acho que é saudades.

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