quarta-feira, 3 de novembro de 2010

O céu de Clara

Calmamente, Clara contempla o céu.

Hoje a lua está cheia e as estrelas parecem ofuscar a visão de tanta luz que irradiam.

Firmamento: minúscula parte do infinito que podemos apreciar de nossa prisão perpétua chamada Terra.

E Clara olha, olha...como se não existisse mais nada a seu redor. Como se os jornais não noticiassem tanta desgraça, como se não existissem tantos problemas em um mundo tão pequeno...enfim, como se o ser humano fosse algo inquebrantável, com uma armadura inviolável e como se não existissem barreiras intransponíveis e a vida fosse acessível a todos, até mesmo aos que não a valorizam.

Todos os dias Clara repete o mesmo ritual: escova os dentes após o jantar, despede-se de todos, abre a janela e fica ali...admirada com tanta beleza, beleza que acaba passando despercebida pelos espectadores das novelas da noite.

Seus pais já a levaram ao psicólogo. Os colegas da escola se afastaram. Todos achavam anormal uma pessoa tão jovem se isolar do mundo para olhar o céu.

Mas, mesmo assim, Clara passava o dia inteiro esperando aquele momento único. O céu não era o mesmo todos os dias, e ela, depois de examiná-lo em detalhes, também não.

Não entendia como a humanidade podia ser tão egoísta e desumana com um infinito de beleza e paz logo ali, sobre suas cabeças.

E Clara, calmamente, contempla o céu.

Mas o céu parece estar menor a cada dia, e as estrelas parecem estar diminuindo em quantidade.

O tempo vai se passando, e a menina começa a ver as estrelas com menos luz e a lua, sem um porquê aparente, foi perdendo o foco...

Clara desesperou-se. De uns tempos pra cá, o único momento em que não se sentia só era quando admirava o infinito, pois estava acompanhada, e muito bem acompanhada, por constelações inteiras, signos, lua, planetas, pensamentos e Deus. Naqueles instantes ela sabia que Ele estava ali a seu lado, amparando e dividindo, somando e distribuindo amor.

Como viveria se não pudesse mais presenciar tudo aquilo?

Mas, cada vez mais, Clara perdia a visão.

Ninguém sabia porquê.

O mundo de Clara foi perdendo o brilho e a cor e, infelizmente, de forma irreversível.

Escuridão. Solidão eterna e permanente.

Era impossível aceitar.

Justo Clara, a menina que acreditava num mundo melhor e que sabia que tudo seria possível se, ao invés de olhar para baixo, as pessoas olhassem para o céu e pudessem perceber o quanto somos insignificantes diante de um processo tão complexo chamado galáxia.

Pena o ser humano não ser inquebrantável e Clara não ter a armadura inviolável que sempre idealizou para todos. Esqueceu de si mesma por pensar demais em causas que uma criança não poderia mudar e, mesmo se gritasse aos quatro cantos a fórmula exata da felicidade, ninguém daria ouvidos.

Os dias foram passando rápido, Clara aproveitava cada segundo como se fosse o último. Mas, assim como o dia termina, a escuridão chegou aos seus olhos.

A menina que calmamente contemplava o céu, perdeu a luz.

Nem médicos, nem seus pais, nem orações, nem ninguém conseguiu um remédio, uma solução.

E Deus?

Não era Ele quem sempre amparava a menina que tanto admirava Suas obras?

Deus não quis reverter a situação.

Enquanto o mundo desabava ao seu redor em busca de soluções e curas milagrosas, Clara esqueceu-se da escuridão, olhou dentro de si mesma e, como que por um milagre, pôde ver todo firmamento novamente.

Era lindo! Tudo simetricamente em seu lugar. Estrelas, planetas, lua, constelações e pensamentos.

Clara descobriu que o infinito que ela tanto amava estava ali, dentro dela mesma. Ela era o infinito.

Todos os planetas e constelações eram formados pelos mesmos elementos que formaram Clara; afinal, vieram todos da mesma explosão.

E, contrariando a todas expectativas, a vida da menina que olhava estrelas não mudou...

Todos os dias Clara repete o mesmo ritual: escova os dentes após o jantar, despede-se de todos e fica admirando o céu. Só que agora é diferente...

Ela não precisa mais abrir a janela.

                                                                                                Rafael Freitas


4 comentários:

  1. Ai. Emoção em cada letrinha. Palavras cortantes e trabalhadas.Parabéns .

    ResponderExcluir
  2. Que bom que vc está com tempo pra postar seus textos. Dê uma olhada no nosso blog também. Até 2ªfeira.

    ResponderExcluir
  3. Olá, Rafael.
    Obrigado pela visita.
    Aproveito para dar parabéns pelo blog e textos.
    Grande Abraço!

    ResponderExcluir