quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

Cara estranho


As trombetas do fim do ano soaram.
Mais um fim entre tantos.
Estava na festa, pude ver em meio às pessoas, aquele cara estranho.
Não me lembro exatamente do nome que me disseram, talvez nome bem popular, desses de pobre.
Mas de alguns detalhes me lembro bem: pisciano, olhos apertados, cabelos castanhos enrolados e uma enorme dor no estômago.
Esses são os detalhes que ouvi. Todos comentavam a seu respeito.
Os detalhes que eu mesmo notei talvez sejam mais abstratos: pisciano fora do aquário, olhos apertados perdidos, cabelos castanhos enrolados como a própria vida e uma enorme dor no estômago (talvez um vazio no peito que doesse mais).
Não sei por que chamava tanta atenção se não desviava o olhar do próprio copo de uísque.
Certamente um egoísta. Um misógino, machista, homofóbico.
Mas isso eu só podia acusar, afinal não trocamos nenhuma palavra nem olhares.
E acusações não faltavam naquela festa, boca a boca, ouvido a ouvido. Todos apontavam o estranho com seu copo de uísque que olhava para o próprio umbigo.
Todos apontavam com razão aquele idiota, insensível, ogro.
Todos diziam as atrocidades que cometia todos os dias com a vida, a história e o coração das pessoas boas que cruzavam seu caminho.
Ouvi tamanhos horrores que decidi me vingar em nome do bem comum.
Marchei com meu ódio estampado no rosto em sua direção. Tinha um plano a executar: jogar aquele copo no chão, segurar com as duas mãos a cara daquele opressor filho da puta e dizer umas verdades! Ah! Todas as verdades do mundo.
Ele não vai sair impune dessa vez!
Parei em sua frente. Impávido colosso. Sentia gosto de sangue em minha garganta.
Vai pagar por tudo que fez a mim e a tantos outros!
Vai pagar!
Joguei seu copo no chão, segurei seu rosto entre as mãos.
Senti um enorme desespero diante daquele olhar. Um olhar estranho, indescritível.
Olhar castanho, opaco na superfície e iluminado em sua escuridão.
Frio e quente ao mesmo tempo. Um paradoxo.
A sua estranheza era um paradoxo.
O salão silenciou. Todos esperavam uma reação típica de um monstro épico, um cuspe, um soco, um pontapé.
Mas nada aconteceu.
O cara estranho, egoísta, idiota, insensível tinha perdido a vontade de destruir a vida de todos que estavam ali.
Abaixou o olhar novamente e saiu em direção à porta.
Foi embora sem nenhuma manifestação de descontentamento.
Aparentava somente tristeza. 
Bem pudera! Pela vida que levava era o mínimo que merecia.
As pessoas aglomeradas, bem vestidas e de bom coração não aceitavam aquela reação.
Todos começaram a se questionar se ele não pagaria nunca pelo que fez.
Logo se questionaram o que ele realmente havia feito.
Eu me questionei o que havia feito a mim.
O que ele havia feito?
O mesmo vazio que estava em seu peito se fez vazio no mundo.


Rafael Freitas



5 comentários:

  1. Teria como você escrever todos os dias? A sociedade precisa ler seus textos diariamente. Isso lhes faria um bem danado. Que quem se preocupe com a sua própria vida deixe de ser visto como egoísta. Que quem diz as coisas cara a cara deixe de ser censurado por ser verdadeiro. E por aí vai.

    ResponderExcluir
  2. Um cara estranho, diferente dos demais, incompreendido. O que lhe sobra falta aos demais. Mais uma excelente história.

    ResponderExcluir
  3. E você, mesmo com vários questionamentos, emociona sempre. Amo.

    ResponderExcluir
  4. Aê, publicou! Muito bom esse.

    ResponderExcluir