sábado, 31 de julho de 2010

Meu aniversário

De grande homem que fui tornei-me um lixo.

De grande lixo que sou tornei-me homem.

Naquele dia tão importante não conseguia pensar em mais nada a não ser numa data indefinida há mais ou menos duas décadas e meia atrás.

Não enxerguei risos e fotos, não ouvi falas e risos. Fiquei inerte. Escultura humana num viaduto à espera de trocados.

Só me recordo da importância do momento.

Nem sei qual data me era mais insólita: se a presente ou a passada, se o agora ou o remoto.

Mastiguei lágrimas em solidão. Felizmente não fui notado.

O dia era mais importante que o ser.

Lembrei-me de minha infância. Feliz ou não já fui criança.

Criança fui feliz ou não.

Nasci.

Sempre ouvi histórias de um período além corpo que não tenho certeza se existiu. Mas me juram que tenho motivos.

Faço força, bebo todas, extrapolo. Não me lembro.

Não me lembro de ter sido realmente feliz e nem sei se isso realmente importa.

Quando não se tem algo não se pode sentir falta.

Sei que conheci pessoas felizes. Mas nunca as vi sozinhas no banheiro.

Senti-me num retrocesso em câmera lenta.

Quando foi que dei os primeiros passos?

Quando disse a primeira palavra? E qual foi?

A primeira letra?

Não me recordo.

Nunca me recordaram.

Pasmem: meus olhos marearam-se.

O exercício simples da memória não me foi possível.

Lembro-me apenas de semanas recentes e de dias torturantes: escola imbecil, pais exaltados, avós ausentes, dias monótonos, brigas inúteis.

Sei que conheci pessoas felizes. Mas nunca as vi defecando.

Usurparam minha infância até que me rebelasse.

Fui embora sem motivos aparentes, mas cheio de motivos no coração.

Bebi muito, fumei. Tentei existir.

Não consegui.

Voltei sem ter pra onde. Fiquei a mercê de outros.

De novo fui embora sem ter pra onde ir. De novo retornei sem ter onde ficar.

Achei melhor reproduzir minha indecência: decidi pela docência.

Sofri deveras, rezei à toa. Salário merda, meu dia: bosta!

Achei melhor conjugar o verbo: união.

Casei-me.

Separei-me.

Recasei.

Agora estou aqui, sem saber o que, pra que, por que da existência deste momento.

Tudo que me era permitido tornou-se impróprio.

O que era casual, corriqueiro.

Exceção, regra.

Inútil, presente.

O dia estranho não foi lembrado.

Não tem importância o que sou, mas somente o que fiz.

Aniversário do meu filho.

                                                                         Rafael Freitas



3 comentários:

  1. Rafael Freitas expressa sua sensibilidade como poucos.
    A facilidade de expor sentimentos através das palavras não é pra qualquer um.
    A poesia aflora naturalmente, sem a necessidade de grandes esforços.
    Ótimo texto. Esse é o cara.

    Renato Duran

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  2. Já tô na sua cola. Adorei o artigo, vc tem futuro como escritor. Bjs.

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